O efeito da crise econômica sobre a vida dos brasileiros foi dramático, com a perda de milhões de empregos, a queda da renda familiar e carrinhos de supermercado mais vazios. Para enfrentar os tempos difíceis, tornou-se imperioso aceitar trabalhos informais sem carteira assinada ou abrir pequenos negócios. Tal flexibilidade, uma conjunção do espírito empreendedor com o empuxo da necessidade, foi crucial para que a taxa de desemprego começasse a recuar antes mesmo do estimado pelos economistas. Os dados mais recentes do IBGE mostram que o desemprego está em queda desde o início de 2017 — a taxa caiu de 13,7%, no primeiro trimestre, para 11,8%, no fim do ano. O total de desocupados diminuiu em 1,8 milhão de pessoas no ano passado por causa do aumento de 1,7 milhão no número de empregados sem carteira assinada. Portanto, a saída para o desemprego, ao menos nesse primeiro momento de retomada econômica, é precária. A maior parte das vagas criadas é de bicos e trabalhos informais ou por conta própria.
Especialistas dizem que o fluxo de brasileiros que estão migrando para a informalidade cresceu porque todos os outros recursos antes à mão, como o seguro-desemprego e eventuais reservas financeiras, se esgotaram durante os dois anos de crise. As pessoas, cedo ou tarde, precisam se virar de alguma maneira. “É natural que isso ocorra, mas o trabalho informal é quase sempre mais precário e menos produtivo”, diz Cosmo Donato, economista da consultoria LCA. De fato, a renda de um trabalhador informal é até 30% menor que a de um com carteira assinada. Isso porque, além da própria volatilidade dos pagamentos, ocupações informais tendem a ser menos qualificadas. Normalmente, a informalidade atinge em cheio os trabalhadores mais vulneráveis e menos escolarizados — mais de um terço deles nem sequer completou o ensino fundamental. O drama do quadro atual brasileiro é que, além de não conseguirmos formalizar a ponta mais frágil da população econômica, houve um aumento significativo do número de pessoas com boa formação, muitas delas com diploma, sendo empurradas para o trabalho informal.
Um levantamento feito pela LCA, com base nos dados do IBGE, mostra que mais de 700 000 diplomados foram para ocupações sem carteira assinada nos últimos dois anos. Apesar de o número também abarcar os casos de empreendedores que deixaram o emprego em uma empresa para começar um pequeno negócio, o retrato geral é desalentador: trata-se de uma mão de obra qualificada que poderia ser mais bem aproveitada no setor formal. Foi o que ocorreu com o cientista da computação Álvaro Silva, de 41 anos. Ele trabalhava em uma multinacional americana como gerente de projetos, mas foi demitido em agosto de 2016. Desde então, a alternativa foi tornar-se motorista da Uber e da 99. “A recolocação em cargos mais altos é difícil. Enquanto não consigo, não fico parado”, diz Silva, pai de dois meninos.
Nos últimos dois anos, quase 250 000 pessoas passaram a trabalhar com o transporte rodoviário de passageiros, ocupação classificada como trabalho por conta própria. Apesar de a categoria incluir taxistas, a grande explicação para o fenômeno é o aumento da demanda de aplicativos de mobilidade, como Uber, 99 e Cabify. Outras categorias mais tradicionais na informalidade também cresceram, como a dos cabeleireiros e a dos serviços de alimentação. Carlos Alberto de Oliveira, de 44 anos, por exemplo, trabalhou por quase uma década na operadora de telefonia Nextel, mas deixou a função de vendedor para embarcar em um negócio próprio com a mulher, Andrea. Hoje, o casal distribui marmitas de bicicleta no bairro de Jacarepaguá, no Rio. Nome do negócio: Marmikleta. Eles contam que a concorrência já cresceu, pois antigos clientes, percebendo a oportunidade, criaram “empresas” semelhantes.
A necessidade de improvisar para conseguir algum rendimento não é novidade para o brasileiro. Nas crises de desemprego mais longas, como a do início da década de 80, a do fim dos anos 90 e a do início dos anos 2000, a informalidade também explodiu. Tornou-se famoso o caso do engenheiro Odil Garcez Filho, que, demitido na chamada década perdida dos anos 80, abriu uma lanchonete que batizou de “O Engenheiro que Virou Suco”, na Avenida Paulista. O estabelecimento durou cinco anos, e Garcez tentou outros negócios no comércio. Em 2001, aos 51 anos, morreu de leucemia.
“A informalidade no Brasil já foi muito maior. Tivemos um avanço importante nas últimas duas décadas. O mercado de trabalho sofreu uma recaída, mas tudo leva a crer que será transitória”, analisa Sergio Firpo, professor de economia do Insper. Ele diz que o setor formal absorverá parte dos trabalhadores que foram para a informalidade, mas que será um efeito gradual. Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), elaborado pelo Ministério do Trabalho, mostram que esse efeito já começou. Apesar de o saldo anual ter sido negativo em mais de 20 000 vagas, os últimos meses do ano mostraram recuperação. “Isolados os efeitos típicos de dezembro, como a demissão dos trabalhadores temporários, tivemos o melhor mês desde 2011”, aponta Donato, da LCA. A reforma trabalhista, que criou outras possibilidades de contratação, ainda pouco afetou o mercado. Só 5 641 vagas intermitentes, modalidade instituída na reforma, foram abertas no ano passado. Mas esse número deve aumentar em 2018.
O brasileiro comum apertou o cinto, buscou alternativa e enfrentou a crise. Ajudaria, e muito, se o governo e os congressistas fizessem a mesma coisa. Com ou sem a reforma da Previdência, há muito a ser feito nos próximos meses para reduzir a burocracia, incentivar os investimentos produtivos e assim fazer girar a roda do desenvolvimento virtuoso e duradouro — sem truques nem atalhos ilusórios.
A ressaca olímpica
Não fosse o Rio de Janeiro, o mercado de trabalho brasileiro estaria em uma situação mais confortável. O estado registrou a perda de mais de 90 000 vagas de emprego formal no ano passado (veja o quadro). Imerso em uma enorme crise fiscal, o Rio também sofre os efeitos da redução dos investimentos. A oferta de postos permaneceu aquecida até meados de 2016, em razão das obras da Olimpíada. Depois veio a ressaca. Construção civil e serviços hoteleiros foram os setores que mais perderam trabalhadores no ano passado. “O Rio deve continuar fechando vagas em 2018”, prevê Cosmo Donato, da LCA. Na outra ponta está Santa Catarina, o estado que mais criou vagas em 2017 e que, historicamente, tem a menor taxa de desemprego do Brasil.
Publicado em VEJA de 14 de fevereiro de 2018, edição nº 2569