Se os problemas derivados da escassez e da contaminação da água doce são assustadoramente transparentes, os da água salgada correm em silêncio. Mais de 3 bilhões de pessoas dependem da biodiversidade dos oceanos para a sobrevivência. Os mares são a maior fonte de proteína do planeta, por meio da pesca, e criam 200 milhões de empregos diretos e indiretos. Eles absorvem 30% do dióxido de carbono emitido na atmosfera — função essencial sem a qual não existiria vida terrestre. Os recursos oceânicos geram 3 trilhões de dólares por ano, o equivalente a cerca de 5% do PIB global. Mesmo diante de sua importância portentosa, temos destruído esse bem valioso. A poluição das águas marinhas, somada aos estragos provocados pelas mudanças climáticas, que interferem na cadeia alimentar, vem destruindo ecossistemas como a fabulosa Grande Barreira de Corais australiana, patrimônio da humanidade, com 3 000 recifes, pondo em risco tudo o que o ser humano extrai das águas salgadas.
Cerca de 40% dos oceanos são intensivamente impactados pelas ações do homem. Entre nossos comportamentos mais preocupantes, destacam-se a pesca predatória, o lixo distribuído ao léu e a devastação de hábitats marinhos. Em torno de 80% da poluição dos mares tem origem em atividades executadas em terra, como o descarte descuidado de fertilizantes, de agrotóxicos e de esgotos. Calcula-se que, todos os anos, inacreditáveis 8 milhões de toneladas de plástico percorram o caminho entre o continente e a zona costeira, até chegar ao mar. Estima-se que metade da fauna marinha, entre aves, tartarugas, peixes e mamíferos, já tenha ingerido pedaços de plástico ou neles se enroscado.
É um problema frequentemente retratado por fotógrafos marinhos, como o americano Justin Hofman, que no ano passado ganhou o prêmio de melhor foto de natureza do prestigiado Museu de História Natural de Londres por um dos cliques que fez na Indonésia: o retrato de um delicado cavalo-marinho melancolicamente agarrado a um cotonete (veja abaixo). Disse Hofman sobre seu trabalho: “Essa foto serve como alegoria para o estado dos nossos oceanos, o atual e o dos próximos anos. Que tipo de futuro estamos criando? Como nossas ações podem moldar o planeta?”.
Ao longo do Fórum Mundial da Água, em Brasília, a Unesco, órgão ligado à ONU, deve reforçar que os anos 2020 serão dedicados ao que se nomeou como Década da Oceanografia. Disse a VEJA o ambientalista italiano Salvatore Aricò, chefe do Departamento de Ciência dos Oceanos da Unesco: “A preservação precisa ser pensada como estratégia para que a sociedade continue a se beneficiar dos recursos marítimos como ferramenta essencial para a produção de alimentos, para o lazer e o turismo e para a regulação do clima”. Um dos objetivos da Década da Oceanografia será mais que dobrar a dimensão das reservas de proteção, hoje 4% da área total de mares. “Para chegarmos à meta, é preciso aproximar as pessoas dos mares, pois o ser humano só costuma compreender os problemas depois de vê-los e vivê-los”, disse Aricò.
O Brasil, talvez surpreendentemente, tem sido referência nesse assunto. Em vídeo publicado na semana passada, o próprio presidente Michel Temer aproveitou a deixa para afirmar que, “com novas unidades de conservação, protegeremos cerca de 25% das águas brasileiras, superando, e muito, as metas que definimos nas Nações Unidas”. Apesar de ser boa a notícia, há um truque nesse postulado. Com 8 500 quilômetros de zona costeira e marinha, entre o Amapá e o Rio Grande do Sul, o país tinha até pouco tempo atrás apenas 1,5% de seu litoral sob cuidados rigorosos. Na onda do Fórum Mundial, anunciou-se, às pressas, a criação de mais duas unidades de conservação, nos arquipélagos de São Paulo e de São Pedro, em Pernambuco, e de Trindade e Martim Vaz, no Espírito Santo. Com essas unidades, que devem ser lançadas oficialmente na segunda-feira 19, chega-se aos 25%.
No entanto, de acordo com Antonio Carlos Marques, biólogo do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e assessor de programas de biodiversidade da ONU para a preservação marinha, a medida, embora louvável e necessária, não se adapta perfeitamente aos objetivos das Nações Unidas. Segundo a organização, cada país é responsável por proteger 10% de seus mares com áreas de diferentes ecossistemas. Isso até os anos 2020. Em quantidade, o Brasil realmente passa a superar esse limite agora. Em qualidade, não. “Não adianta estar atento a áreas enormes e pouco exploradas, como a dos arquipélagos agora acrescentados, e ignorar manguezais, praias e corais rasos, que não foram incluídos nas novas unidades de preservação”, afirma Marques. “Além disso, nossa ciência ainda é primitiva. Temos fundos oceânicos que nem sequer foram mapeados e, por isso, mal sabemos que porção tem sido realmente conservada.”
Símbolo da exploração oceânica, o economista, escritor e navegador paulistano Amyr Klink passou 34 de seus 62 anos realizando travessias navais. Em entrevista a VEJA, assim ele definiu o respeito que se deve ter com os oceanos: “O barco tem uma característica que eu amo. Ele afunda. A vida de navegador me ensinou que não dá para passar a perna no mar. Pouco conhecemos a área oceânica, e a verdade é que dependemos mais dela do que o contrário”. A civilização explorou só 5% de toda a extensão de água salgada do planeta. É pouco, mas o suficiente para saber que tudo o que se joga no mar um dia voltará para a superfície — se não hoje, nas próximas gerações.
Publicado em VEJA de 21 de março de 2018, edição n�� 2574