- Carlos Drummond de Andrade fixou em versos definitivos o clima moral de uma época: “Este é tempo de partido / De homens partidos”.
- No século XVII francês, as Guerras Religiosas erigiram muros intransponíveis: católicos e protestantes se odiavam com a pureza dos que creem deter a verdade — e também o caminho e a luz, claro está.
- No mundo antigo, a República de Cartago representou o maior desafio à então invencível República Romana. Aníbal Barca chegou às portas de Roma e, se aceitarmos a hipótese de não poucos adeptos da história conjectural, “se” Aníbal tivesse decidido cruzar o Rubicão, a história do mundo teria conhecido rumos muito diversos.
- Nosso Tempo, poema publicado em A Rosa do Povo (1945), deu conta de uma circunstância não somente brasileira como também universal. Em poucos anos eclodiu a Guerra Fria, planetária trincheira política e ideológica que se prolongou por décadas.
- O universo digital e as indefectíveis redes sociais não são exatamente pioneiras em sua capacidade de multiplicar rivalidades, gestar ódios e disseminar extremismos.
- Os protestantes franceses não economizaram argumentos em sua guerrilha narrativa contra os católicos. Estes, prometiam os huguenotes, eram muito mais cruéis do que os tupinambás. Ora, eles eram apenas antropófagos, pois devoravam ritualmente seus adversários. Já os católicos, pecadores gulosos, eram teófagos, pois devoravam nada menos do que o corpo de Cristo no ritual da comunhão.
- Aníbal acampou com suas tropas por mais de uma década, não se decidindo a tomar Roma. Antropofagicamente os romanos adotaram a estratégia do invasor e mandaram uma expedição para a cidade-Estado fenícia. O general cartaginês precisou voltar às pressas para proteger sua cidade.
- Mais uma vez, Drummond: “Esse é tempo de divisas / tempo de gente cortada. / De mãos viajando sem braços, / obscenos gestos avulsos”.
- Eis uma inesperada definição minimalista do Facebook: obscenos gestos avulsos. Sem pontuação, pausa alguma: imagem metonímica da (des)inteligência na ponta dos dedos dos vertiginosos tempos contemporâneos.
- A República Romana triunfou na Terceira Guerra Púnica (149-146 a.e.c.) e não perdoou a insolência de Aníbal. Os cartagineses foram escravizados, a cidade destruída e o chão foi salgado para que ali nada mais se edificasse. Mais tarde, o imperador Augusto (28 a.e.c.) denominou Pax romana a essa peculiar forma de pacificação, que consiste em aniquilar o outro completamente.
- Os católicos franceses não economizaram armas na repressão contra os protestantes. Na malfadada Noite de São Bartolomeu, em 23 e 24 de agosto de 1572, milhares de huguenotes foram massacrados em Paris.
- O universo digital produz o milagre às avessas da multiplicação da Pax romana em escala antes inimaginável. A pólis pós-política brasileira aqui pode ganhar todas as copas do mundo. Será que desejamos impor uma Pax brasiliensis no outubro que já se encontra na esquina?
Publicado em VEJA de 8 de agosto de 2018, edição nº 2594