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O que aprendi na prisão

Por que discordo de quem diz que “quanto pior a cadeia, melhor”

Por Fernando Grostein Andrade
Atualizado em 15 set 2017, 06h00 - Publicado em 15 set 2017, 06h00
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  • O doutor Drauzio Varella marcou um café comigo num lugar muito deprê. Era próximo ao Hospital Sírio-Libanês, onde pessoas conversavam com médicos sobre assuntos indigestos. Eu, que tenho pavor de hospital, só não saí correndo porque sou fascinado pelo doutor. Ele comentou que nós, que nascemos do outro lado da ponte, onde estão os bairros de Pinheiros, Jardins e Lapa, vivemos numa bolha. E que, quando entramos num presídio, achamos que estamos indo lá ajudar, mas são eles, os detentos, que acabam nos ajudando a ampliar nossa visão de mundo. Diagnóstico preciso.

    Eu queria fazer uma experiência em um longa-metragem com um grupo de teatro dentro de alguma cadeia. O doutor me encorajou a ir em frente. Cheguei à Penitenciária de Guarulhos. Era divertido ver a reação dos bandidos na primeira aula, quando o agente anunciava que ninguém poderia ter preconceito ali. Era preciso interpretar policial, dançar balé, viver outras “personas”. No primeiro dia, havia oitenta candidatos. No segundo, sobraram apenas doze corajosos. Foram muitas as trocas de experiências com os presos, mas uma me marcou mais. Havia na penitenciária um famoso bandido, dos mais perigosos, do qual não constava registro de ter sorrido um dia. Conheci-o trabalhando na oficina. No turno dele não sumia nada. Comparando as nossas vidas, tínhamos pouco em comum: nasci numa família de classe média, mãe professora universitária, pai, já falecido, jornalista respeitado. Ele, de família pobre, viu o pai matar a mãe a facadas na adolescência, matou o pai, mastigou (dizem) seu coração e começou a matar a partir dali sem parar quem ele achava que merecia. Por incrível que pareça, ficamos “amigos” — entre muitas aspas mesmo.

    Quando ele resolveu fazer a aula de teatro, formou-se uma fila na porta da sala para vê-lo praticando exercícios de interpretação. Ele sorriu. O boato correu a cadeia. Novas turmas de teatro vieram. Alguns dos atores fizeram pequenas aparições em filmes e disseram coisas que me marcaram para sempre. “Tenho finalmente algo para meu filho se orgulhar quando eu sair deste inferno.” Uma luz de esperança brotou no cárcere e começou a inspirar muita gente. Ficou um pouco menos difícil sonhar lá.

    Conto essa experiência porque, quando o assunto é bandido, volta e meia leio nas redes sociais: “Tá com pena? Pega para criar”. Ou, então, ve­jo gente que acha que “quanto pior a cadeia, melhor”. Pois bem, acredito que quem escreve palavras como essas está de acordo com o diagnóstico do doutor Drauzio — preso a um mundo muito limitado. Não por maldade, mas por desconhecimento. Claro que nem todos os bandidos conseguirão se reintegrar à sociedade. Mas, nessa jornada, tão importante quanto ajudá-los pela via do emprego e da geração de renda é contribuir com eles na esfera íntima e afetiva. É impossível uma coisa vingar sem a outra. Um dado que pode servir de pista: segundo os agentes da Penitenciária de Guarulhos, desde que eles criaram o grupo de teatro, em 2010, 180 detentos frequentaram as aulas e em torno de 90% não voltaram para o crime.

    Publicado em VEJA de 20 de setembro de 2017, edição nº 2548

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