Paolla Oliveira desce da viatura com o figurino de sua personagem, a policial Jeiza, de A Força do Querer. Os passantes que começam a gritar ao seu redor não fazem distinção entre a atriz e sua persona fardada. Paolla entra no jogo. “Quem vocês querem que eu prenda?”, pergunta, num intervalo da gravação realizada pela Globo no bairro carioca do Leme. As respostas são inflamadas: “Bibi e Rubinho”, “eles não merecem perdão”, “Bibi é idiota de entrar na onda do marido”. O assédio caloroso do público, nesse episódio de semanas atrás, atesta o sucesso alcançado pela trama das 9 de Gloria Perez: com ibope não raro na casa respeitável dos 40 pontos, A Força do Querer é a novela brasileira de melhor desempenho em quatro anos. O significado da interação entre Paolla Oliveira e as ruas não se esgota nos números da audiência: depois de um tenebroso inverno em que não despertaram mais que apatia, os folhetins voltaram a pautar as rodas de conversa, da Amazônia aos Pampas. Bibi, a beldade suburbana encarnada pelo farol do feminismo Juliana Paes, se dará bem ao enveredar pelo crime por amor ao marido traficante? Zeca, o caminhoneiro turrão vivido por Marcos Pigossi, deve ficar com a incorruptível Jeiza ou com a espevitada Ritinha (Isis Valverde)? Quando as pessoas, em casa ou no boteco, debatem sobre a vida de figuras da ficção, estabelece-se aquela alquimia singular: o Brasil se inebria com o próprio reflexo no espelho da TV.
O feito ganha contornos de novo triunfo quando contrastado com o passado recente. Há três anos, esse espelho parecia rachado. Depois de colher seu maior êxito da década com a inovadora Avenida Brasil, em 2012, a Globo viu despencar o número de espectadores sintonizados em suas novelas — um êxodo que chegou a 5,5 milhões de pessoas em 2014. Pois as ovelhas desgarradas voltaram: o alcance diário das cinco tramas da emissora, de 64,4 milhões de pessoas, retornou ao patamar dos tempos de Avenida Brasil.
Naturalmente, boa parte do mérito cabe à atual novela das 9, que devolveu a estatura à maior atração da TV brasileira, dilapidada por decepções como Babilônia (2015). No entanto, o gênero folhetim vive uma fase de graça em seu todo — não só de público, mas também de criatividade. A emissora foi feliz ao apostar numa temporada da novelinha Malhação que fala sobre diversidade e tem a grife de Cao Hamburger, criador do infantil Castelo Rá-Tim-Bum — o resultado é sua melhor audiência em onze anos. No horário das 6, Novo Mundo beira os 30 pontos no ibope ao fazer de dom Pedro I e da imperatriz Leopoldina adoráveis heróis de aventura de capa e espada. Com sua trama afiada sobre o roubo a um hotel, Pega Pega honra a tradição da comédia ligeira das 7 — mesmo longe do fim, ostenta audiência de reta final de sucesso do horário. Até Os Dias Eram Assim, propalada “supersérie” (na prática, um novelão) das 11, superou o tédio do início e se impôs com sua saga romântica que se desenrola da ditadura militar à redemocratização: desde que a Globo ressuscitou as tramas das 11, há seis anos, é a que alcança melhor audiência em São Paulo. VEJA acompanhou gravações, flagrou atores trabalhando — como o leitor vê ao longo destas páginas — e reuniu personagens das principais novelas na foto que abre esta reportagem.
Antes do renascimento, múltiplos fatores levaram o folhetim brasileiro à crise existencial — a ponto de haver quem proclamasse sua extinção iminente. O streaming de vídeos desobrigou o espectador de seguir a programação das emissoras; celulares e computadores roubaram o monopólio da tela da TV. Em paralelo, a explosão criativa das séries americanas, que revolucionaram os padrões narrativos de vinte anos para cá, pôs as novelas à prova. Só o tempo mostrou o óbvio: renegar o gênero era a pior forma de responder à nova realidade. “Como se pode falar em decadência das novelas se mesmo hoje, com tantas opções de lazer, seu reinado não foi nem de longe ameaçado pelas séries?”, diz Silvio de Abreu, autor de sucessos como A Próxima Vítima (1995) e comandante-geral dos folhetins da Globo. “A novela é o que o Brasil sabe fazer de melhor no entretenimento. Não faz sentido jogá-la fora.” José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, executivo que tornou a teledramaturgia da emissora carioca a potência que é hoje, corrobora o diagnóstico: “Houve um período em que as novelas estavam tentando novos caminhos. Mas renovar não é destruir”. A melhor indicação de que a Globo acredita nisso é sua nova aposta: a construção de um complexo de três estúdios ultramodernos só para as novelas. No espaço de 4 500 metros quadrados dentro do Projac, sua sede no Rio de Janeiro, várias etapas de gravação serão integradas num mesmo lugar.
Boni vê na ascensão de Silvio de Abreu, o primeiro autor brasileiro a comandar as novelas da Globo, um lance essencial da retomada. “Faltavam no comando especialistas que conhecessem as bases do folhetim. Aos poucos, o Silvio foi suprindo a ausência de outros líderes do passado”, diz. No cargo desde 2014, Abreu impôs uma regra que — pasmem — andava esquecida: o imperativo da boa narrativa. “Não basta uma sinopse interessante. O autor tem de mostrar que vai saber como contá-la”, afirma ele. Agora, as novelas apenas entram em produção com certo número de capítulos escritos. O autor precisa dizer a que veio, e com antecedência.
No esforço para resgatar os folhetins do limbo, a emissora deitou no divã. Há três anos, a Globo constatou que suas novelas não estavam mais conseguindo falar de forma adequada com a população (percepção que o público, do outro lado da tela, certamente endossaria). Sob a condição do anonimato, um conhecido publicitário dá um exemplo: “As novelas da Globo passaram por uma fase irritante de obsessão por favelas. Isso tinha a ver com uma ânsia de conquistar a tal nova classe C — mas tudo foi feito tão sem critérios que nem a classe C aguentou”. Para recolocar o gênero nos trilhos, Carlos Henrique Schroder, diretor-geral da emissora, patrocinou a criação de um grupo de trabalho — pomposamente batizado de Sintonia com a Sociedade — para estudar tendências de comportamento. “Concluímos que só é possível ter sintonia com o país quando sabemos nos conectar às suas angústias. A maior função da novela é gerar controvérsia”, diz Monica Albuquerque, responsável pela área de talentos da Globo.
Além da discussão sociológica, executivos, autores e diretores empreenderam um debate interno que levou à busca de novas soluções narrativas — mas que enfatizou, sobretudo, uma revalorização dos fundamentos do folhetim. “A novela é a crônica do nosso cotidiano. Se no futuro alguém pesquisar como se vivia no Brasil, será ela que vai ensinar isso”, diz a criadora de A Força do Querer, Gloria Perez. Reforça o diretor Rogério Gomes, o Papinha: “Novela é para o povo. É um erro tentar ir contra isso”.
Os resultados dessa terapia de grupo estão aí para ser conferidos. Malhação está irreconhecível. A novelinha surgiu há 22 anos como um aceno meio fútil aos jovens que frequentavam academias de ginástica, mas hoje é não só um precioso celeiro de novos atores como um laboratório de testes das novas formas de comunicação digital. Na temporada atual, Cao Hamburger narra as dores do crescimento de cinco amigas que estudam em escolas vizinhas — uma particular e rica, e a outra, pública e com carências típicas. “Eu queria falar do apartheid social no país”, diz. A ambientação em São Paulo é outra inovação — e teve consequências curiosas. “Tive de ensinar os figurantes a andar mais rápido. Em São Paulo, as pessoas não caminham: elas têm pressa”, conta o diretor Paulo Silvestrini.
No esforço de resgate do gênero, foi preciso assumir que andar rápido não funciona tanto em outras situações. Uma regra não escrita das novelas reza que se deve ir devagar em questões potencialmente explosivas. O beijo gay é o caso mais lembrado: conforme a habilidade do autor, pode ser rejeitado ou aceito com entusiasmo. “Encontrar o tom exato para tratar de um tema é o que leva uma novela a responder às aflições e dúvidas das pessoas”, afirma o especialista Mauro Alencar, da Universidade de São Paulo. Em faixas como a das 9 da noite, muita gente conserva o hábito de ver novela em família — e é preciso sensibilidade para pôr temas incômodos nas rodas de pais, filhos e avós. Na angústia de se modernizarem, várias novelas dos últimos anos ignoraram esse dado básico — e se estreparam. Gloria Perez acertou a mão até agora no retrato de autodescoberta da personagem trans de A Força do Querer. O drama da jovem Ivana (Carol Duarte) se desenrola de forma lenta, gradual e segura. Na terça-feira 29, ela vai assumir o corte de cabelo masculino.
A busca pela sintonia com o público não pode contornar um fato inescapável — a crise. Cansado do noticiário, o brasileiro procura nas novelas um instante de respiro. “Nesse processo de descrença por que passa o Brasil, precisamos construir algo em que acreditar. O cara começa a falar de política, e vai brigar com o colega. Conversa sobre economia, e vai se deprimir. Está difícil achar temas palatáveis — e a novela bem-sucedida é aquela que supre essa lacuna”, diz Luiz Henrique Rios, diretor-geral de Pega Pega.
A saída pelo escapismo é um clássico desde as comédias de Hollywood durante a Grande Depressão americana, nos anos 20. No Brasil de hoje, leveza também é atributo apreciado. Novo Mundo transformou figurões da pátria em heróis românticos: dom Pedro virou paixão das mocinhas, senhoras e crianças plugadas na TV no horário. Caio Castro é intérprete aplicado: foi a Lisboa para “sentir a textura” do linguajar lusitano. “Não estava programado ter sotaque, mas eu insisti. Queria dar um toque autoral”, diz. Novo Mundo também ganhou o espectador pelo apuro visual. A caracterização de Leopoldo Pacheco como o pirata Fred sem Alma remete à franquia Piratas do Caribe. “Tenho de raspar o coco toda vez que vou gravar. É como passar uma lixadeira na cabeça”, diz. A personagem mais inacreditável, contudo, é a mameluca Germana. Para dar vida à “brasileira do século XIX”, Vivianne Pasmanter, de ascendência polonesa, teve de se enfear. Junto com Licurgo (Guilherme Piva), ela forma o núcleo dos “porcos”. “Jogamos tinta preta neles para ficarem imundos”, diz a figurinista Marie Salles. O futum de Germana exige imaginação dramática dos colegas de cena. “Toda vez que contraceno com alguém, eu peço: não esqueça do meu fedor”, diz Vivianne.
Embora tome liberdades históricas capciosas, como vender um dom Pedro amigo da causa indígena, é inegável que Novo Mundo acaba despertando interesse pela vida no Brasil do período retratado — sobre o qual uma pesquisa da Globo mostrou que boa parte do público não sabe muita coisa. “Não é à toa que Germana e Licurgo fazem sucesso: por meio deles, o público descobre de onde vem o famoso jeitinho brasileiro”, diz Monica Albuquerque. O mesmo se dá em relação à novela das 11. Os espectadores mostraram desconhecer fatos básicos do período da ditadura militar. “É chocante que parte das pessoas não saiba nem como foi feita nossa Constituição”, diz sua protagonista, Sophie Charlotte. Eis o consolo: por mais precária que seja a formação das pessoas, a novela lhes agrada por acenar com correspondências simples entre o passado recriado na ficção e a atualidade.
Há um vivo debate moral nas tramas hoje no ar — o escapismo, afinal, precisa vir temperado com realidade. Os sucessivos escândalos que têm abalado a vida pública brasileira ficam, é verdade, reservados para a faixa entre duas novelas, no Jornal Nacional. Mas, embora o petrolão e as delações não entrem diretamente nas tramas, há uma preocupação constante com o que se poderia chamar de ética do cotidiano. Cabe aos personagens, individualmente, pesar as escolhas morais de sua vida. Pega Pega, a trama das 7, é talvez o melhor exemplo desse debate nas novelas. O roubo do hotel reflete questões morais recorrentes em um tempo de desvios bilionários revelados pela Operação Lava-Jato. Não são recursos públicos que estão em jogo, mas o dilema central é correlato: haveria circunstâncias pessoais que justificassem passar a mão no dinheiro alheio? “Toco nas feridas, mas com humor. Já estamos sofrendo demais com a corrupção”, diz a autora, Claudia Souto.
A novela das 7 também prova a repercussão alcançada pelas tramas da Globo nas redes sociais, a grande caixa de eco da cultura contemporânea. “As novelas são uma mola propulsora da vida em rede. Em vez de falarem da vizinha, as pessoas debatem as atitudes e a vida amorosa dos personagens”, diz o publicitário Pedro Cruz, da agência FCB. Os espectadores de Pega Pega aderiram à moda da “shipagem”: a torcida para que dois personagens da trama se tornem um casal. A hashtag #jutônia pede a união da policial Antônia (Vanessa Giácomo) e do ladrão arrependido Júlio (Thiago Martins). A Força do Querer já é a trama das 9 com o maior número de comentários no Twitter — a dois meses de seu final, já foi alvo de 2,5 milhões de posts, contra só 1 milhão de Babilônia inteira.
A Globo aprendeu, ainda, a beber das séries americanas de maneira mais relaxada e eficaz. A ideia de explorar conflitos de classe dentro do hotel de Pega Pega vem do sucesso inglês Downton Abbey. Na pele de Eric, galã que compensa o trauma da morte da mulher mergulhando no trabalho de executivo engravatado, Mateus Solano foi buscar inspiração no presidente-vilão vivido por Kevin Spacey em House of Cards. “Você fica olhando para o Frank Underwood e se pergunta: o que esse cara está tramando? Procuro adicionar um pouco desse mistério ao meu mocinho.”
A ascensão de novos roteiristas completa o arejamento geral. A virada heroica do gênero, nos anos 70, se deu quando autores teatrais perseguidos pela ditadura, como Dias Gomes, migraram para a TV. Eles injetaram os ingredientes que diferenciam o folhetim nacional de seus histriônicos congêneres mexicanos e das anódinas soap operas americanas: a crônica e a crítica social. Os dezessete autores revelados na gestão Silvio de Abreu cresceram vendo novelas, foram assistentes de veteranos — e agora têm a missão de resgatar sua magia perdida. É o caso de Angela Chaves e Alessandra Poggi, de Os Dias Eram Assim. “Chega uma hora em que você quer contar suas histórias”, diz Alessandra.
Nas cinco novelas no ar, a única autora veterana é Gloria Perez. Mas seu estilo popularesco também se renovou, como se constata no perfil ousado das três protagonistas de A Força do Querer. Com Ritinha, a ousadia é apresentar uma mocinha de sexualidade livre. Bibi Perigosa, como os anti-heróis de séries americanas, dramatiza as escolhas morais que podem levar uma pessoa a princípio honesta e pacífica à perdição. A inovação maior está em Jeiza. A policial e lutadora vivida por Paolla Oliveira põe em circulação um tipo que sacode a imagem de chata das mocinhas: a super-heroína que prende a bandidagem e soca rivais no hexágono. É um Capitão Nascimento de saia. “Ela poderia ser sobrinha dele, né?”, diz Paolla. Para encarnar o novo pilar da moral nativa, Paolla fez aulas de jiu-jítsu e uma imersão num quartel da PM carioca. “Desculpe o atrasinho, é que machuquei meu pé e estou andando como uma lesma. Machucados são comuns agora”, disse ela quando concedeu entrevista a VEJA. Não, o acidente não aconteceu no ringue nem nos morros cariocas: “Estava dançando salsa numa cena e chutei o tripé da câmera”. A novela se reinventou, mas não perdeu seu antigo rebolado.
O grande teste da sobrevivência
Com ou sem novelas, o principal desafio das emissoras de TV é um só: como adaptar-se à nova era do entretenimento. Com a Netflix à frente, o hábito de ver filmes e séries por streaming pôs em xeque velhos postulados da TV aberta, como assistir a programas nas faixas de horário determinadas pelas emissoras. Não bastasse a reviravolta causada pela ascensão da Netflix, que já possui 104 milhões de assinantes no mundo, Apple, Facebook e Google deverão entrar na produção de programas de TV em breve, seguindo o rumo de outro gigante, a Amazon. O impacto do streaming já se faz sentir forte na TV americana. Nos últimos anos, metade da audiência perdida pelos canais abertos no país foi abocanhada pela Netflix — que recentemente ultrapassou, ainda, o tamanho da TV a cabo nos Estados Unidos. Incomodada, a Disney já anunciou que deixará de licenciar atrações para a Netflix e lançará o próprio serviço de vídeos. A tradição das novelas ajuda a explicar por que a dinâmica desse processo tem sido mais lenta no Brasil. Se a Globo viu a audiência do gênero crescer neste ano, a TV paga sofreu com a crise e com a concorrência do streaming. O setor, que quatro anos atrás se preparava para comemorar a marca histórica de 20 milhões de assinantes, decresceu desde então. Só entre maio de 2016 e maio deste ano, a sangria foi de 262 000 usuários. Enquanto isso, a Globo usa a boa fase das novelas para alavancar sua resposta à Netflix: o serviço GloboPlay. Assim como a rival americana, a rede carioca não divulga números, mas informa que as novelas já respondem por um terço da audiência do GloboPlay. Cerca de 30% desses espectadores são jovens. É um indício de que o hábito de ver folhetins (não necessariamente na TV aberta) talvez não esteja condenado a morrer tão cedo.
“Tenho um olhar de historiadora”
Numa tarde de inverno, Gloria Perez recebeu VEJA em seu escritório, na Praia de Copacabana. Em A Força do Querer, ela repete um ritual: escreve a novela em pé na cozinha. “Preservo a coluna e vejo o mar azul”, diz. Ela vê tudo azul mesmo: com o sucesso das 9, superou a fraca Salve Jorge (2012). Aos 68 anos, Gloria é a última autora da Globo que escreve sozinha. Na conversa, ela fumou quatro cigarros e preferiu não falar do assassinato da filha, Daniella Perez, em 1992. Ao comentar sua origem acriana e as lendas amazônicas da novela, fez o repórter segurar um amuleto: o olho de boto.
Por que abordar a questão dos transgêneros? É um tema do momento que as pessoas têm dificuldade de entender. Quando você faz novela, reflete sobre o assunto com o público. O curioso é que eu já queria falar dos trans nos anos 80. Li um livro sobre uma professora chamada Joana que contava como eram as operações, como ela passou a ter barba e virou João, o João Nery. Fiquei tão mexida que fiz o projeto de uma minissérie. Lembro que o Boni (antigo chefão da Globo) me chamou à sala dele e disse: “Gloria, você tem cada coisa”. Nunca mais se falou nisso.
Boni estava certo? Estava. Na época, ninguém iria entender.
Diante de situações fantasiosas, as pessoas falam: parece novela da Gloria Perez. Isso a incomoda? Eu entendo perfeitamente. Minhas novelas anteciparam tendências tão à frente do tempo que as pessoas custavam a crer. Quando fiz Barriga de Aluguel (1990), fui tachada de fantasiosa. Em América (2005), quis mostrar os brasileiros que tentam entrar nos Estados Unidos pelo deserto. E fui falar com essa gente. Tenho um olhar de historiadora e jornalista. Mas as pessoas ainda assim achavam fantasioso.
Como acreditar nas cenas da personagem de Deborah Secco em América? As pessoas riam, mas aquelas coisas eram reais. Por exemplo: ela ser pega tentando entrar nos Estados Unidos no porta-luvas de um carro. Eu me inspirei numa foto que a embaixada americana me deu. Agora, não me pergunte como botaram a moça ali dentro e fizeram o carro andar.
A personagem também era mandada aos Estados Unidos numa caixa, pelo correio. Em Miami, li sobre uma mulher que tinha sido enviada para lá numa caixa. Talvez pareça fantasioso e estranho. Mas é a vida real.
Em resumo, a fama de fantasiosa é injusta? Eu compreendo: as pessoas querem logo rotular o que nunca viram. Mas isso não me incomoda em nada.
Concorda que está mais comedida em A Força do Querer? Quando Ivana se transformar em trans, muita gente vai dizer que é fantasia. As pessoas têm medo e se afastam do que não é lugar-comum. Não se preocupe: a novela ainda vai dar o que falar. Desafio você, aliás, a apontar uma coisa irreal nas minhas novelas.
Acabamos de falar de tantas, Gloria. Mas vamos adiante. Qual a sua opinião sobre o politicamente correto? Acho um saco. Não me sinto afetada porque nunca dei bola para isso. Se você tenta escrever uma história seguindo o que esse pessoal pensa, ela não acontece. A vida não é politicamente correta.
Há muitas mulheres como Bibi Perigosa? Claro. Tanto é que existem essas organizações, Mulheres que Amam Demais. Há homens assim também. O tango é música sobre homens que amam demais.
Como surgiu a sereia da novela? É uma profissão que me encanta. As sereias ganham fortunas nos Estados Unidos. Veja, o mundo está mudando, novas profissões e novas maneiras de se expressar estão surgindo.
Lembrei de outra cena fantasiosa: Bibi botando fogo num restaurante para destruir provas contra o marido. Não tinha vigia ou câmera? Não tinha, né? O cara trabalhava lá, é óbvio que explicou a ela como fazer o caminho sem ser pega pelas câmeras. Fantasioso é pensar que todos os recursos estão disponíveis o tempo todo.
E as conversas de Murilo Benício com um boi em América? Perdeu de novo: um peão de Barretos me contou da oferta que recebeu para tentar montar o touro Bandido, depois de quase ser morto por ele. Foi comovente o relato de como ele conversou e pediu ao boi que o poupasse. É interessante a relação do homem do campo com os animais.
A senhora já nadou com botos, como a Ritinha? Nadei muito em rio, mas não com botos. Só conheci filhos de boto.
Publicado em VEJA de 30 de agosto de 2017, edição nº 2545