Foi tomada a decisão de intervenção federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Deixando de lado as circunstâncias e as motivações da decisão e considerando que se trata de fato consumado, resta desejar que o interventor, as forças de segurança e as Forças Armadas sejam bem-sucedidos e consigam reduzir o descontrole da segurança pública naquele estado.
Escrevo este artigo com algumas considerações e sugestões, provavelmente desnecessárias.
Uma primeira questão óbvia: organizações criminosas devem ser enfrentadas com investigações criminais e prisões. Não é das Forças Armadas essa função. Não cabe a elas reunir provas, promover ações penais, decretar prisões e emitir julgamentos.
Forçoso reconhecer, porém, que a situação do Rio de Janeiro é peculiar, na qual organizações criminosas detêm controle, pelo menos parcial, de territórios, aterrorizando moradores e populações inocentes. Não raramente, tal controle é ilustrado por tiroteios, pela imposição do fechamento de escolas ou comércio ou pela presença no espaço público, à luz do dia, de pessoas ligadas ao tráfico portando armamento pesado, como metralhadoras ou fuzis.
Nesse contexto incomum, de emergência, as Forças Armadas têm um papel.
Há um risco à soberania nacional. Não, evidentemente, em todo o território nacional ou o risco de tomada do poder, mas, nas áreas dominadas por traficantes armados, há, na prática, a negação da soberania nacional, com a imposição aos moradores de regime de exceção, sem direitos, sem a proteção da lei e com regras ditadas por criminosos.
Há que compreender as dificuldades para que as forças ordinárias de segurança pública possam resolver, sozinhas, esse problema. Isso é ilustrado pelo número de policiais assassinados no Rio de Janeiro no último ano, por si só um escândalo nacional. Faltam treinamento, recursos, melhores salários, equipamentos, muito, falta muito, sem embargo da qualidade individual e da inegável bravura dos agentes de segurança.
Assim, a intervenção temporária das Forças Armadas na segurança pública do Rio de Janeiro tem razões suficientes. O “exército” do tráfico precisa ser enfrentado, com cautela, por meio de uma força sobrepujante, e as Forças Armadas brasileiras são quem pode fazê-lo no momento.
Ainda assim, a intervenção tem de ser temporária. Não é função ou propósito das Forças Armadas combater o crime, mesmo que estejamos falando de poderosas organizações criminosas.
Para que a intervenção possa ser temporária, é preciso desmantelar as organizações criminosas, PCC e Comando Vermelho, principalmente, o que novamente remete à questão das investigações, processos e prisões.
Não há organizações criminosas invencíveis.
As sete famílias mafiosas de Nova York foram desmanteladas por exitosas investigações criminais nas décadas de 80 e 90 realizadas no âmbito federal e também pelas autoridades locais. Paul Castellano, John Gotti, Tony Salerno e vários outros, todos viram o fim de suas carreiras criminosas. Isso muito contribuiu para o renascimento de Nova York, uma cidade bem mais segura atualmente do que no passado, pelo menos considerando os índices de criminalidade.
De forma semelhante, o reinado de terror da Cosa Nostra siciliana e dos chefes Toto Riina e Bernardo Provenzano teve o seu fim na década de 90 graças aos esforços de juízes, procuradores e policiais corajosos. Duas das organizações criminais mais poderosas que o mundo já conheceu, o Cartel de Medellín e o Cartel de Cali, foram destruídas pelas investigações e prisão de seus líderes. Não se deve ser ingênuo e pensar que o crime não persistiu de outras formas, mas o poder, inclusive de intimidação, dessas organizações foi eliminado ou sensivelmente reduzido.
Para enfrentar organizações criminosas poderosas, é preciso foco e recursos. Espelhando-se nos exemplos exitosos acima apontados, é preciso criar forças-tarefa no âmbito dos órgãos policiais e no Ministério Público que tenham por objetivo exclusivo investigar e processar essas organizações e as suas lideranças, identificar suas atividades, sua renda e patrimônios, buscando o seu desmantelamento por prisões, condenações e confisco. Paralelamente, as Forças Armadas, além de eliminar o domínio territorial, podem contribuir com inteligência e com os meios indispensáveis para a implementação efetiva das ordens de prisão, apreensão e confisco. Tais forças-tarefa precisam ter os recursos humanos e financeiros necessários, além de motivacionais. Elas podem ser criadas no âmbito federal e estadual, já que o tráfico é uma atividade complexa, que envolve crimes federais e estaduais. Melhor ainda se trabalharem juntas. No exemplo de Nova York, foram montadas forças-tarefa pelo FBI (uma para cada família mafiosa), pelas procuradorias federais e também pelas autoridades locais, que coordenaram seus esforços.
É preciso controlar as prisões. A prisão das lideranças criminosas tem, para ser realista, por primeiro objetivo a neutralização, e apenas em segundo lugar a ressocialização. Enquanto presas, não cometem crimes, simples assim. Mas para tanto é necessário controlar a comunicação dos presos com o mundo exterior, sob pena de incorrer no risco de as lideranças presas continuarem a comandar o crime de suas celas, o que frustra os objetivos da prisão e compromete o resultado geral dos esforços.
Os presídios federais são os mais qualificados para abrigar lideranças criminosas, por sua estrutura e pelo profissionalismo dos agentes. Não há histórico de fugas, de introdução de celulares ou de rebeliões. Ainda assim, precisam ser urgentemente aprimorados, com maior automação, para a diminuição do contato pessoal entre agentes e presos, com a ampliação da quantidade e da qualidade dos parlatórios e com o estabelecimento de regras mais rígidas para visitantes, como a obrigação de que as visitas ocorram somente em parlatórios e com gravação. Se for o caso, com exceção das visitas dos advogados, mas pelo menos com controle e gravação da visita de todas as demais pessoas. É rígido, sim, mas o cárcere duro se impõe para lideranças de organizações criminosas.
É preciso conciliar tudo isso — processos criminais exitosos, controle territorial, prisões duras e desmantelamento de organizações criminosas — com o atendimento da população através da prestação de serviços públicos regulares e de qualidade nas áreas afetadas pelo crime. É preciso reduzir os atrativos do tráfico principalmente para jovens desempregados, propiciando qualidade de vida e oportunidades de emprego e suprindo a ausência do Estado.
Ao mesmo tempo, deve-se persistir com os esforços concentrados contra a corrupção, que deteriorou, talvez mais que em qualquer outro lugar, os cofres públicos e a credibilidade de lideranças no Estado do Rio de Janeiro. O enfrentamento da corrupção e o combate ao crime organizado são complementares. Não há trocas compensatórias. É preciso restabelecer a confiança dos cidadãos no Estado e na democracia, e isso não se faz escolhendo segurança pública em detrimento da integridade ou com lideranças comprometidas. Ambos os objetivos devem ser perseguidos simultaneamente.
É preciso vontade política em uma democracia para mudanças. A insegurança pública, com cerca de 60 000 homicídios por ano, e a corrupção pública, com os crimes escandalosos julgados nos últimos anos, chegaram a níveis intoleráveis. Não são compreensíveis tergiversações ou retrocessos, como, por exemplo, o que se cogita, quanto à corrupção, de não mais permitir a execução da pena após a condenação em segunda instância, e assim voltar à prática dos processos que nunca terminam e à impunidade dos poderosos, mas essa é uma outra história.
Parece pouco o tempo disponível para todas essas tarefas, mas a intervenção federal, o auxílio das Forças Armadas e a criação do Ministério da Segurança Pública talvez possam consistir em uma oportunidade para, pelo menos, iniciar o longo processo de desmantelamento dessas organizações criminosas, com a simultânea outorga da proteção da lei, dos serviços do Estado e das oportunidades de mercado a uma parcela da população em regra negligenciada, e, também assim, aumentar a liberdade, a segurança e o bem-estar de todos.
* Sergio Fernando Moro é juiz federal
Publicado em VEJA de 14 de março de 2018, edição nº 2573