Distribuídas de porta em porta, as cestas básicas dos Comitês Locais de Abastecimento e Produção (Clap) oferecem inúmeras utilidades ao ditador Nicolás Maduro. Elas diminuem a propensão a protestos, reduzem as filas nos supermercados e dão poder aos militares. Segundo a procuradora Luisa Ortega, que foi destituída do cargo pela recém-formada Assembleia Nacional Constituinte (ANC) e deixou o país, as cestas básicas também servem a um outro fim: enriquecer o ditador. De acordo com Luisa, uma empresa sediada no México, a Group Grand Limited, que está em nome de Rodolfo Reyes, Álvaro Uguedo Vargas e Alex Saab, pertenceria, na realidade, a Maduro. “Essas provas temos conosco. Vamos entregá-las às autoridades de vários países — Estados Unidos, Colômbia e Espanha — para que seja feita uma investigação”, afirma Luisa.
As bolsas Clap foram criadas por Maduro em abril do ano passado, quando os venezuelanos se digladiavam pelas senhas para entrar nos supermercados e comprar alimentos a preços subsidiados. As filas eram pontos de tumultos e manifestações, pois reuniam pessoas descontentes sob sol forte ou chuva por longas horas. “Quando enfim entravam nos estabelecimentos, os cidadãos se davam conta de que havia pouca coisa para comprar. Com as bolsas Clap, o governo mandou todos para casa, para esperar pela comida”, diz o inglês Philip Gunson, da filial caraquenha do International Crisis Group, ONG de resolução de conflitos. A cesta básica vem em uma caixa de papelão com as imagens de Nicolás Maduro com o braço erguido e de seu antecessor, Hugo Chávez. O pacote é pago com antecedência e não é possível escolher o que vem dentro dele. Geralmente, os itens incluem alimentos básicos importados como farinha de milho (usada no preparo das tradicionais panquecas, as arepas), óleo, arroz, macarrão, leite em pó, feijão-preto, açúcar, farinha de trigo, ketchup, manteiga, café e atum e sardinha enlatados. Por vezes, a caixa contém farinha de milho mexicana, mais indicada para a produção de tacos do que de arepas.
A oposição não tem dúvida de que as Clap servem como ferramenta de controle político. “Trata-se de um mecanismo perverso que tem tido efeito sobre pessoas desesperadas. Se Maduro quisesse mesmo resolver o problema do abastecimento de comida, teria incentivado a produção nacional e aceitado a ajuda de outros países”, diz Roberto Patiño, da organização opositora Caracas Mi Convive. Quem deixa de votar em uma eleição que interessa ao governo pode perder o direito de comprar uma cesta Clap. “As autoridades dizem por escrito em um papel em quem se deve votar. Se não obedecemos, o conselho comunitário do bairro não vende mais a caixa de comida. O aviso é direto, porque chega para todos nas residências”, afirma a dona de casa Judith Arcia, de 57 anos, moradora de La Vega, região pobre de Caracas. Ela é cozinheira voluntária em uma entidade que distribui alimentos doados pela população a 800 crianças em nove refeitórios.
Os Comitês Locais de Abastecimento e Produção são dominados por chavistas. Eles atuam com os conselhos comunitários dos bairros, também afinados com o governo, para definir a lista dos moradores que podem comprar a caixa, que sai por até 15 000 bolívares (cerca de 3 reais no câmbio paralelo), quantia que corresponde a 15% do salário mínimo venezuelano. Integrante das Clap, Carmen Araujo, de 55 anos, exibe a lista de beneficiados em seu prédio e mais dois edifícios e defende a iniciativa do governo: “O presidente está atuando em favor dos pobres. Há uma guerra econômica contra nosso país”.
Outro fator na equação das Clap é o envolvimento dos militares, que controlam quase todo o sistema de compra e distribuição de comida. “As cestas são um grande negócio para os militares. Eles importam alimentos usando um câmbio favorável e ficam com uma parte dos dólares”, denuncia o deputado Angel Alvarado. Há suspeitas de que os militares também desviem alimentos para o mercado negro.
Segundo o instituto de pesquisas Datanalisis, metade dos venezuelanos já comprou a Clap pelo menos uma vez, mas só 20% a recebem com alguma regularidade. Seu conteúdo, de quase 10 quilos, só é suficiente para suprir 3,1% das necessidades alimentares de uma família. “Somos cinco pessoas, e ela não dura uma semana”, diz Aracelis Parica, de 22 anos, mãe de três crianças, com idade entre 1 e 7 anos, que está registrada para receber a Clap. Todos os dias, no fim da tarde, ela vasculha o lixo de uma padaria e come os restos de comida que encontra, uma cena frequente nos bairros onde há restaurantes. “Faço isso há dois anos, desde quando a situação ficou difícil”, conta Aracelis. Segundo ela, a caixa não chega há mais de um mês. A três quarteirões dali, um grupo de crianças e adolescentes esperava pelo caminhão de lixo em outra padaria. Quando o veículo chegou, o estabelecimento destrancou as portas dos fundos. Ali mesmo, o grupo sentou-se no chão para comer restos de frango e de tortas doces. A Venezuela tem mais bocas do que Maduro é capaz de controlar.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2017, edição nº 2546