Em 9 de novembro, o economista Paul Krugman escreveu em sua coluna no jornal The New York Times que a crise brasileira foi agravada pelas medidas de austeridade adotadas pelo governo Dilma a partir de 2015. Para ele, laureado com o Nobel de Economia em 2008 por seus estudos em comércio internacional e economia geográfica, momentos de recessão pedem um maior gasto governamental, o oposto do que fez o então ministro da Fazenda, Joaquim Levy. Seu artigo foi mal recebido por economistas brasileiros, que o acusam de ignorar que foi justamente o excesso de despesas do governo que levou o país à crise. De Nova York, onde mora e leciona na City University of New York Graduate Center, Krugman conversou com VEJA por telefone sobre esse e outros assuntos. Em 12 de dezembro, o economista estará em São Paulo, onde falará a 350 CEOs e lideranças das maiores empresas do Brasil em evento organizado pelo Experience Club. A seguir, sua entrevista.
Em 2015, o senhor afirmou que a crise em que o Brasil estava entrando era similar à do Canadá, motivada pela queda no preço das commodities. Olhando em retrospecto, ainda acha que a situação era parecida? Não. Eu estava muito mais otimista sobre o Brasil do que deveria. Dois fatores importantes me escaparam na época. Um foi o colapso do mercado consumidor, aparentemente causado por uma explosão na dívida das famílias. Depois, a resposta do Brasil à recessão foi uma surpresa para mim. Eu não esperava um aperto repentino na política monetária e um movimento brusco em direção a uma austeridade fiscal. Fazia tempo que eu não via um país dar uma guinada tão aguda em tão pouco tempo para uma contração nas políticas fiscal e monetária diante de uma crise.
O Brasil errou, então, em frear os gastos, mesmo com um déficit fiscal importante? Claro! O Canadá foi prudente e se comportou como uma economia clássica: afrouxa a política monetária quando a economia se contrai e a aperta quando ela melhora. O Brasil adotou medidas pró-cíclicas, que francamente eu não esperava ver em lugar nenhum. Não deu certo.
Era previsível, na época, que a crise fosse piorar, uma vez que a resposta do governo ficou clara? Com certeza. Por isso digo que fiquei chocado com as medidas de austeridade fiscal. Eu lia os jornais e via o governo dizendo que a austeridade aumentaria a confiança dos investidores e a economia voltaria a crescer. Meu Deus! Há pouquíssimo tempo realizou-se uma experiência massiva dessa doutrina na Europa, e foi um fracasso completo. Fico pasmo de ver alguém achar que funcionaria em outro lugar.
Não foi justamente a mão aberta do governo que causou o endividamento da população? Não conheço o Brasil bem o bastante para lhe dizer a causa exata do endividamento da população. Mas vamos fazer uma comparação com os EUA, que, como o Brasil, têm uma situação fiscal insustentável a longo prazo. Não tão ruim quanto a do Brasil, que fique claro, mas os programas sociais e as leis tributárias atuais não podem ser mantidos indefinidamente porque a conta não fecha e o déficit está crescendo. O maior problema americano é o custo da saúde para uma população que está envelhecendo, então precisamos baratear a saúde e achar novas fontes de receita. No caso do Brasil, o maior problema fiscal são as aposentadorias e pensões. É preciso achar uma maneira de reduzir o tamanho da Previdência gradualmente. É uma solução óbvia. É fácil falar, não sou político, mas a lógica econômica é esta: achar soluções graduais e de longo prazo. Uma redução abrupta no investimento governamental em meio a uma recessão é loucura! Há vasta evidência histórica de que as consequências para a economia são terríveis.
“A receita de austeridade que funcionou para o Chile não deu certo para todos os países que a tentaram. Pode funcionar no Brasil, mas a história mostra que não há nenhuma certeza disso”
Os brasileiros votaram em uma plataforma econômica que promete ainda mais austeridade. O senhor acha que foi uma aposta errada? Não conheço o bastante o clima político no Brasil. Vamos ver o que a nova administração vai fazer. Mas me parece que há muitas medidas de austeridade de curto prazo aí, e não é disso que o Brasil precisa. Outros governantes no mundo foram eleitos com uma plataforma política parecida com a de Bolsonaro, porém na prática gastaram mais a curto prazo. Mesmo aqui, nos Estados Unidos, os gastos do governo aumentaram com Trump, apesar de a situação econômica ser bem mais confortável. Enfim, não sei o que vai acontecer no Brasil, mas é claro que o país tem programas sociais que não consegue bancar. O Brasil era louvado até há pouco por ter reduzido a desigualdade e a pobreza. É triste ver que isso está sendo revertido.
A equipe econômica de Bolsonaro tem inspiração declarada nas medidas liberais adotadas pelo governo chileno nas décadas de 70 e 80. É um modelo aplicável ao Brasil de hoje? Suspeito que não estejamos falando de duas economias similares. De qualquer modo, é importante lembrar que o choque liberal promovido pelos chamados Chicago Boys no Chile a partir de 1973 produziu uma crise terrível a partir de 1981, bem antes da recessão generalizada que assolou a América Latina. O Chile passou por um pesadelo durante dez anos. A história feliz que ouvimos veio somente depois. Quem pensa que as medidas de austeridade vão causar um retorno imediato deveria olhar com cuidado para as lições do que de fato aconteceu no Chile.
Então a receita chilena não funciona no Brasil? O Brasil certamente é menos aberto do que deveria, precisa liberalizar o comércio. Permita-me, porém, falar do México, um lugar que conheço melhor do que o Chile. Os mexicanos fizeram uma dramática abertura da economia para o exterior, e ela se tornou mais competitiva. No entanto, o país não decolou como se acreditava que aconteceria. O que me leva a crer que a história do Chile tem aspectos particulares que não são replicáveis em outros lugares. Talvez uma população com nível de educação mais alto, não sei. O ponto é que a receita que funcionou lá não funcionou em todos os países que a tentaram. Pode funcionar no Brasil, mas a história mostra que não há nenhuma certeza disso.
O senhor ganhou um Nobel graças a seus estudos sobre comércio internacional. Acha que o Mercosul atrapalha o Brasil, como declarou Bolsonaro? Os ingleses tinham uma ideia parecida quando votaram o Brexit, a saída da União Europeia, e não está sendo fácil para eles. A ideia de que um país vai compensar o que perde em um acordo comercial com seus vizinhos com excelentes acordos em outros continentes é ilusória. No geral, não existem tantas proteções tarifárias no mundo como se acredita. É uma visão dos anos 50, quando de fato as barreiras eram enormes. Hoje a média de tarifas para bens manufaturados no mundo é de 3%. Não há muito espaço para negociação aí.
O time de Bolsonaro tem falado em baixar tarifas de importação unilateralmente, sem a necessidade de negociar acordos com outros países. A ideia é boa? Embora seja um dos países mais importantes no mundo emergente, o Brasil ainda é pequeno em termos de relevância no comércio global. É o tipo de país que se beneficiaria muito de uma derrubada unilateral de suas barreiras tarifárias. Vocês já tiveram barreiras muito mais altas do que as que têm hoje. Mas ainda são protecionistas. A Índia, por exemplo, era o país mais fechado do mundo, quase não comercializava com o exterior. Produzia tudo o que consumia, e era terrivelmente ineficiente. Por conta própria, liberalizou seu comércio, a economia decolou e a população teve acesso a produtos melhores e baratos.
“O banco central é independente da Casa Branca por bons motivos, e isso deve ser respeitado. Trump deveria calar a boca, mas infelizmente não vai fazer isso”
Bolsonaro tem falado em seguir a doutrina Trump e limitar o acesso da China ao mercado nacional. Faz sentido? É uma ideia estúpida para o Brasil, que é muito mais dependente do comércio com a China, e mesmo para os Estados Unidos. É bizarro. O Brasil está numa ótima posição para se aproveitar dessa política irracional americana. Nós somos competidores diretos para vários produtos, e a guerra comercial de Trump oferece ao Brasil uma oportunidade única de ganhar esse mercado.
E para os Estados Unidos, não há nenhum ganho possível em uma guerra comercial? A ideia de que os EUA são vítimas de seus parceiros comerciais está errada. Um ou outro setor foi prejudicado, e isso é um problema real, mas no geral o país está mais rico graças ao comércio internacional. Importamos produtos melhores e muito mais baratos do que poderíamos produzir, e usamos nossa indústria para exportar coisas que somos particularmente bons em fazer. A determinação de Trump de confrontar a China e a Europa está ligada a uma obsessão por déficits na balança comercial bilateral com elas, mas esse não é um bom critério. Essa discrepância não é ruim, uma vez que nosso dinheiro acaba rendendo mais. Não há um raciocínio lógico por trás dessa guerra de Trump, a não ser mau pensamento econômico.
O Fed, o banco central americano, tem dado sinais de que vai aumentar a taxa básica de juros. Trump é contra. Quem tem razão? Pode até ser que o presidente tenha razão, mas ele é a última pessoa no mundo que deveria fazer esse julgamento. Existe um argumento, com o qual eu concordo, de que o Fed deveria manter os juros onde estão até que houvesse evidência de inflação alta. Até porque a meta de inflação americana é, na minha opinião, muito baixa. Mas essa é uma avaliação a ser feita por analistas independentes, não por um político que tem interesse pessoal no assunto. O banco central é independente da Casa Branca por bons motivos, e isso deve ser respeitado. Trump deveria calar a boca. Infelizmente, ele não vai fazer isso.
Os analistas que preveem uma estagnação global nos próximos anos são muito pessimistas? Acho que não existe um grande problema que grite “crise”, mas há uma série de pontos fracos que podem desencadear uma recessão maior. A China está desacelerando, o que contribui para diminuir o preço das commodities, e os emergentes sofrem com isso. Argentina, Turquia e Brasil estão com problemas. O mercado imobiliário americano ainda anda fraco. E a lista continua. Nada que sozinho possa derrubar a economia, mas a soma pode ser problemática. E o que mais me preocupa é que não temos instrumentos para lidar com uma possível recessão. Os juros americanos já estão muito baixos. Na Europa e no Japão, os juros estão em zero. O que fazer caso venha uma recessão? Não acho que uma crise esteja no horizonte, mas não é impossível.
Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2018, edição nº 2610