O futuro já pareceu bem mais róseo para Gleisi Hoffmann. Hoje ré em um processo e acusada em três investigações de receber um total de 23 milhões de reais em propina, a senadora e atual presidente do PT deve ser a primeira parlamentar no exercício do mandato a ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no escândalo de corrupção na Petrobras. Calcula-se que uma de suas ações deva entrar na pauta do tribunal ainda neste semestre. Nela, Gleisi e o marido, o ex-ministro Paulo Bernardo, respondem por corrupção e lavagem de dinheiro, acusados de serem os destinatários de 1 milhão de reais desviados dos cofres da estatal (o delator Antônio Carlos Pieruccini contou à polícia como fazia chegar às mãos da senadora os pacotes de dinheiro). Dado que o Supremo é a última instância da Justiça, a parlamentar, se condenada, se tornará inelegível — proibida, portanto, de disputar eleições. Dependendo da pena, ainda pode ser presa. Mas não é só. Se as coisas não estão boas para Gleisi nesse processo, tampouco parecem melhores nas outras investigações.
VEJA teve acesso a depoimentos inéditos colhidos pela Procuradoria- Geral da República no caso do chamado “quadrilhão do PT”. Em setembro de 2016, Gleisi foi denunciada na ação por participação em organização criminosa. Um dos depoentes, o advogado Marcelo Maran, revelou que, por muitos anos, o dinheiro desviado dos cofres públicos financiou, além das campanhas eleitorais da senadora, o seu conforto e o da sua família. Despesas comezinhas, como gasolina, conta de luz, telefone, condomínio, brinquedos para seus filhos e pequenos luxos — como motorista particular —, em vez de serem pagas com os rendimentos da senadora e de seu marido, saíam de uma conta-propina abastecida, na ponta, pelo dinheiro do contribuinte. Marcelo Maran, que firmou um acordo de delação com a Justiça, confessou ter sido responsável por controlar, por quase seis anos, a conta-propina que bancava as despesas do casal.
A polícia já havia descoberto que Paulo Bernardo, quando era ministro do Planejamento, no governo Lula, tratou de planejar também a vida financeira da família. A Consist, uma empresa de São Paulo, foi escolhida para administrar a lista de funcionários públicos, pensionistas e aposentados endividados que recorriam aos empréstimos consignados (cujas parcelas vêm descontadas automaticamente na folha de pagamento). Quem recorria aos créditos pagava uma taxa de administração — o lucro da empresa. A taxa cobrada dos funcionários e aposentados, porém, era superfaturada. Parte do excedente ia para o PT e outra parte para figurões do partido, incluindo Gleisi e seu marido. Para receber sua parcela da propina, o casal usava o escritório de advocacia de Guilherme Gonçalves, chefe do delator Marcelo Maran. Segundo ele, no início, o dinheiro vindo da Consist foi usado apenas para financiar a campanha de Gleisi ao Senado. Depois da eleição, no entanto, como a propina continuava jorrando, Maran recebeu nova orientação: “Guilherme determinou que todas as despesas relacionadas a Paulo Bernardo Silva e Gleisi fossem pagas com valores do fundo Consist”, contou o advogado. A ordem foi seguida à risca. A propina que começou a pingar “pela causa” passou a ser usada “em causa própria”.
As investigações da Operação Lava-Jato descobriram que o casal recebeu 7 milhões de reais do esquema de corrupção da Consist. O dinheiro bancava praticamente todas as despesas cotidianas da família. Se um eletrodoméstico na residência do casal quebrava, o “fundo Consist” resolvia. De consertos de liquidificador a taxas de IPVA, portanto, tudo era quitado com dinheiro de propina. Em seu depoimento, Maran apresentou planilhas nas quais detalha os gastos da família. Gleisi e Paulo Bernardo receberam entre 150 000 e 200 000 reais por mês em dinheiro sujo, de 2010 a junho de 2015, quando a Lava-Jato desmantelou o esquema. “O que saía do fundo com mais frequência era o combustível do carro”, lembra Maran.
O fundo Consist foi gestado pelo ex-ministro Paulo Bernardo. Mas a grande fonte de renda da família era o prestígio político da senadora — influente no PT e, sobretudo, próxima do ex-presidente Lula. A parlamentar é acusada de receber propina não apenas da Consist e da Petrobras, mas também da Odebrecht (5 milhões) e da JBS (10 milhões). A força-tarefa ainda tenta rastrear o caminho dessa fortuna. “Gleisi foi uma das mais beneficiadas nos esquemas ilícitos mantidos pela organização criminosa na Petrobras, no Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e junto à Odebrecht e à J&F (controladora da JBS)”, escreveu o então procurador-geral Rodrigo Janot na denúncia feita ao STF.
A senadora já estava havia nove meses na lista de réus da Lava-Jato no STF quando foi eleita presidente do PT, em junho de 2017. Não era uma unanimidade nem entre os petistas, mas o apoio de Lula foi decisivo. No plano inicial, o PT presidido por ela se abraçaria ao ex-presidente, e vice-versa. No ano passado, logo depois da condenação de Lula em primeira instância, Gleisi desafiou a Justiça: “Vamos fazer uma denúncia internacional. Não vamos reconhecer (a condenação)”. Eleita com 3,1 milhões de votos em 2010, ela aparecia em oitavo lugar no último levantamento feito pelo Instituto Paraná Pesquisas, em dezembro. Mas veio a condenação de Lula em segunda instância, e com ela uma certeza: para a senadora, estavam sepultadas as chances de tentar a reeleição ao Senado.
Gleisi, então, passou a traçar cenários alternativos para o futuro. Nas suas elucubrações, calculou que poderia tentar uma vaga na Câmara Federal — para a qual seriam necessários cerca de 100 000 votos. A opção a deixaria mais distante de conquistar o governo do Paraná, seu sonho. Em compensação, garantiria o precioso foro privilegiado, que a manteria longe da caneta infalível do juiz Sergio Moro. Não que as lentes cor-de-rosa com que a senadora vinha enxergando o mundo não tivessem certo lastro estatístico. Passados quatro anos da Lava-Jato, o STF ainda não julgou ninguém, embora o caso já tenha produzido 147 inquéritos e 21 denúncias contra mais de 100 políticos.
Quis o destino, porém, que, depois de três anos de tramitação, seu processo finalmente aterrissasse na mesa do ministro Celso de Mello. Revisor da Lava-Jato na 2ª Turma, ele agora só precisa terminar de redigir seu voto para anunciar a data do julgamento de Gleisi — que, a esta altura, já desconfia: tem cada vez menos motivos para continuar otimista. Procurada, a senadora disse que não recebeu recursos de ninguém para custear suas despesas pessoais ou de sua família.
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Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2018, edição nº 2570