Senti de repente um impacto acima da perna esquerda e pensei: “Caco de vidro”. Tinha ouvido barulho de tiros segundos antes e corri para um depósito de bebidas, para tentar fazer as garrafas de muralha. Não deu nem tempo de me jogar no chão. Começou a voar vidro para todos os lados. Mas não foram os estilhaços que me feriram. Quando olhei para a perna, já dormente, vi que uma bala tinha afundado na minha pele. Sangrava, sangrava, e aí veio a dor forte na barriga. “Meu filho!”, gritei. Me levaram para o hospital, me deitaram na mesa de parto, e eu ainda me lembro de ter dito: “Salvem meu menino”. Depois apaguei. Quando abri os olhos, no dia seguinte, foi que eu soube: meu filho, Arthur Cosme de Melo, nasceu de cesariana, às 18h27, com 52 centímetros. O relatório não tinha o peso do bebê. Os médicos preferiram não levá-lo à balança. Quanto menos se mexesse nele, melhor. O tiro atingiu Arthur em cheio.
Desde esse dia, vivo angustiada, rezando pela melhora do meu filho, esperando pela hora da visita no hospital em que ele está, esperando que a dor que eu sinto vá embora. Minha dor não é na perna rasgada pela bala nem no corte da cesariana: é no peito. Arthur ainda tem dois drenos nos pulmões. Já está respirando sozinho, mas fica ligado a um aparelho, que pode ajudá-lo se necessário. A maior preocupação dos médicos é como ele vai se recuperar do estrago que o tiro deixou em sua coluna. Ele passou por uma cirurgia de descompressão da medula, que deu certo. Não entendo muito o que os médicos falam, mas entendo que meu filho tem chance de andar como qualquer outra criança. Olho para suas perninhas, ainda sem movimento. Os braços ele mexe. Até apertou o meu dedo.
Vi o rosto do Arthur pela primeira vez na mesma tarde em que saí do hospital. Ele tinha sete dias de vida. Reconheci meus traços nele. Não pude ainda pegá-lo no colo por causa da lesão na coluna. Foram me contando aos poucos o que tinha acontecido depois de a bala atravessar nosso corpo. Primeiro, soube pelo médico das feridas nos pulmões e na clavícula; depois, meu primo falou da coluna machucada e da possibilidade de ele não poder andar. Desabei. Se na hora do tiro eu estivesse 1 milímetro para o lado direito, não estaríamos passando por nada disso. Arthur estaria em casa, no quarto que montamos para ele, no berço ainda vazio. Faltavam só três dias para a data prevista para o parto normal. Foi a diferença entre nascer na paz e na guerra.
Quem leva uma bala perdida uma vez fica achando que a qualquer momento pode vir outra. Fica o medo. Qual é a chance de uma bala cair duas vezes no mesmo lugar? Minha família vive na roça, no interior da Paraíba. Fui a única de seis filhos a tentar uma vida melhor na cidade grande. Consegui no Rio de Janeiro um bom emprego. Trabalho hoje na tesouraria de um supermercado. Mas agora me falta a paz. Me acertaram durante um confronto entre policiais e bandidos. Eu estava no lugar errado na hora errada, e no meio de uma situação que, de tão absurda, não era nem para existir. Não estou preocupada em saber quem disparou o tiro. Quero é que a violência diminua e que mais nenhuma mãe precise viver essa agonia.
Os médicos não dão previsão de alta ao Arthur. Meu menino é um guerreiro. Ainda estava no útero e já lutava pela sobrevivência. Observo o meu filho no hospital e fico sonhando, como toda mãe faz: quero que ele tenha a chance de ir para uma faculdade e saia da favela. Sou otimista. Quando vi o rostinho do Arthur, já sabia da ferida que a bala perdida que atravessou nosso caminho tinha deixado em seu corpo. Mesmo assim, respirei fundo e disse: “Meu filho, bem-vindo ao mundo”.
Depoimento a Monica Weinberg
Publicado em VEJA de 19 de julho de 2017, edição nº 2539