“Se quiserem montar uma coleção, têm de começar por este artista: Goeldi.” Cercado por um grupo de mulheres bem-vestidas que o ouvem com reverente atenção, o provável consultor de investimentos em artes plásticas aponta para a solitária gravura do artista carioca exposta no 3º andar do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, em São Paulo. O tutor em seguida se põe a explicar o sentido de uma escultura de Waltercio Caldas na qual um letreiro de neon traz as palavras too soon: “É ‘cedo demais’, em inglês. Então, qual o tema da obra? É o tempo”. Em uma sala próxima, uma monitora explica a um grupo de crianças o provável sentido da obra de um artista americano — ou, como ela prefere, “estadunidense”. No térreo, há mais crianças, deitadas no chão para melhor ver os cogumelos de argila na instalação do espanhol Antonio Ballester Moreno — que, esparramada logo na entrada do prédio, é dos vários espaços amplos caraterísticos da 33ª Bienal de São Paulo.
Como em todas as edições anteriores, a exposição recém-aberta — que se encerra em dezembro — tem suas “bienalzices”. Estão lá as instalações que são só ajuntamentos de itens aleatórios, muitos dos quais Marcel Duchamp já usou na primeira metade do século passado (a indústria de louças para banheiro deve muito ao artista francês), e a videoarte narcisista com o artista discursando na tela. Também não falta uma categoria recente de bienalzice: a obra para fazer selfie, caso da oca da libanesa Youmna Chlala, com almofadas onde o visitante se deita — e se fotografa. E, claro, performances, muitas performances, cuja gritaria ecoa pelo pavilhão.
A despeito desses cacoetes, a bienal exibe uma diferença alvissareira em relação às antecessoras mais recentes: mostra-se consciente das limitações desse tipo de exposição gigantesca. Seu curador, Gabriel Pérez-Barreiro, espanhol radicado em Nova York, não se furta a assumir e enfrentar certa crise de identidade de um formato nascido em meados do século XX. A mais óbvia consequência disso fica patente na ocupação dos 25 000 metros quadrados do prédio de Oscar Niemeyer. Os números da nova edição são um tanto maiores que os da bienal anterior: há 600 obras de 103 artistas, contra 415 de 81 artistas em 2016. O visitante, no entanto, sai com a impressão de que esta é uma mostra menos atulhada. Há amplos espaços vazios entre as obras, o que permite uma melhor fruição dos trabalhos. “Tem momentos em que a quantidade conspira contra a qualidade. Fica tão saturado que atrapalha nossa percepção”, diz Pérez-Barreiro.
Também é uma bienal mais vaga no seu tema, Afinidades Afetivas, e mais diversa, graças à divisão em núcleos, cada qual com uma proposta distinta. Pérez-Barreiro convidou sete artistas — entre eles, os já citados Waltercio Caldas e Ballester Moreno — para organizar cada um sua exposição autônoma. Com isso, pretendeu fazer uma crítica à categoria todo-poderosa que domina o mercado de arte: os próprios colegas curadores. “Quis devolver aos artistas o protagonismo na arte”, diz.
Os próprios artistas não estão livres de idiossincrasias curatoriais, sobretudo nos textos de jargão pesado e lirismo kitsch que apresentam suas mostras. “O edifício atua como uma fronteira entre vida humana e não humana, cada uma com sua temporalidade e seus modos, quase opostos, de estar no mundo”, divaga a argentina Claudia Fontes no núcleo “O Pássaro Lento”. Outra: “Essa curadoria é um ato selvagem. Estamos construindo uma colagem trágica. As obras mudam, transmutam, ecoam ao longo dos meses”, diz a artista Sofia Borges em outro bloco da mostra, no qual o “ato selvagem” se traduz em pesadas cortinas de veludo como fundo para esculturas que lembram emoticons de cocô. Mais despretensiosa e eficaz é a artista Vânia Mignone, que credita à paixão pela MPB a inspiração de seus quadros de fundo vermelho berrante — muito bons, por sinal.
Se o visitante quiser ir direto a um exemplo feliz de artista-curador, deverá se dirigir ao fundo do 3º andar do pavilhão. Na exposição montada por Mamma Andersson, as telas estranhas mas sóbrias produzidas pela própria artista sueca — algumas das quais lembram a atmosfera de tédio e claustrofobia de um Edward Hopper — aparecem ao lado de imagens sacras nórdicas e criações de artistas desconhecidos (e já mortos) do século XX, que comungam o fato de terem sofrido de transtornos mentais variados. É o caso das pinturas do americano Henry Darger (1892-1973), com sua série delirante sobre crianças escravizadas. “Mamma nos oferece uma história alternativa da arte moderna, olhando por um lado psicológico”, diz Pérez-Barreiro.
Embora não esteja a salvo de ações de propaganda — no seu primeiro fim de semana, um grupo estendeu no pavilhão uma faixa pedindo a liberdade de um político preso por corrupção —, esta bienal parece uma ilha de serena neutralidade se comparada às duas edições anteriores, cheias de bandeiras de todo tipo — políticas, ecológicas, feministas. Isso é possível em ano de eleição e polarização? Com a palavra, mais uma vez, o curador: “Desconfio dos discursos messiânicos que acenam com soluções simples para questões complexas, inclusive na arte”. Menos às vezes é mais.
Publicado em VEJA de 19 de setembro de 2018, edição nº 2600