O arquiteto Ángelo Calcaterra é filho da irmã caçula de Franco Macri, o pai do presidente da Argentina, Mauricio Macri. Calcaterra e o mandatário são, portanto, primos hermanos, porque os pais são irmãos. Os dois sempre mantiveram uma relação afetuosa, são parecidos fisicamente e possuem casa no mesmo condomínio em Punta del Este, a praia uruguaia dos portenhos. Em 2007, Calcaterra comprou a Iecsa, a construtora de seu tio, Franco. A partir daí, ganhou o perigoso título de “príncipe das obras públicas” no país. Na manhã de segunda-feira 6, Calcaterra compareceu a um tribunal em Buenos Aires para fazer uma delação premiada. Ele admitiu ter mandado entregar bolsas cheias de dólares em 2013 e 2015, com o objetivo de ganhar a concessão de obras no governo de Cristina Kirchner, adversária política de Mauricio Macri.
O vínculo de sangue já tem arranhado a imagem do presidente nas manchetes dos jornais. O impacto que a história ainda poderá causar na popularidade de Macri, que já não anda lá essas coisas, ainda é uma incógnita. O estrago vai depender muito de como será a reação oficial. Para pessoas próximas, ele tem dito que se sente “doído”, mas que não moverá um único dedo para socorrer o primo. “Não temos como saber se Macri realmente está conseguindo se isolar do caso ou não”, diz o cientista político argentino Pablo Secchi, da ONG Poder Ciudadano, em Buenos Aires. “Mas essa é a chance que ele tem para dizer que sua luta contra a corrupção é legítima e que ele está disposto a sacrificar até parentes se for necessário.”
Não há evidências, até agora, de que Macri esteja de alguma forma envolvido nas transações ilegais ou de que tenha beneficiado seu primo com concessões, seja na condição de prefeito de Buenos Aires, seja na de presidente. Quando Macri venceu as eleições, em dezembro de 2015, Calcaterra decidiu vender a Iecsa por questões de incompatibilidade. Se participasse de licitações governamentais, seria um escândalo. Depois de um ano, a firma encontrou um comprador.
Se Macri ainda consegue se manter afastado do olho do furacão, a oposicionista Cristina Kirchner já foi atingida. No início do ano, o jornal La Nación recebeu oito cadernos com anotações de um motorista, Oscar Centeno. Durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner, de 2003 a 2015, Centeno recolheu com seu Toyota Corolla bolsas cheias de dinheiro em trinta endereços da capital. O butim foi levado para a residência oficial, em Olivos, para o apartamento dos Kirchner no bairro de Recoleta e para outros lugares. O automóvel era do secretário do ministro de Planejamento, Julio de Vido. Minuciosamente, o chofer registrou os dias, os horários, os nomes, os endereços e a quantidade de dinheiro que transportou. Cerca de vinte empresários e ex-funcionários públicos foram convocados a depor — entre eles Calcaterra, o primeiro a aceitar a delação premiada, figura jurídica que foi incorporada à legislação argentina apenas em 2016, e cujos estragos podem ser semelhantes aos da Lava-Jato no Brasil.
Cristina já foi convocada para depor na Justiça e deve comparecer nesta semana. Não se descarta a hipótese de que a ex-presidente acabe até admitindo parte das acusações para, com isso, arrastar junto consigo o primo de Macri e, quem sabe, o próprio presidente. Macri, por sua vez, garante que não vai barrar nenhuma investigação. Além disso, se tentar algum movimento nesse sentido, corre o risco de ser desmascarado pelos próprios aliados. Entre os compromissos assumidos com os partidos de sua coalizão, a Cambiemos, estava o de que ele não tentaria salvar a pele de amigos, nem de parentes. “O que está acontecendo é uma mudança enorme. Empresários próximos do presidente se apresentam à Justiça. Não há impunidade para ninguém. Isso era parte do acordo que fiz com Macri para fundar o Cambiemos”, tuitou a deputada Elisa Carrió, da base governista, no mesmo dia em que Calcaterra foi ao tribunal. Tudo indica que os primos hermanos caminham para um ruidoso rompimento, e lá vai a Argentina para um novo tango.
Publicado em VEJA de 15 de agosto de 2018, edição nº 2595