Era uma vez crianças que pararam de pular corda, de jogar cinco-marias, de virar-se contra a parede no esconde-esconde e de passar o anel. Era uma vez pais que já não sabem — ou não querem — tirar os filhos do magnetismo incontornável e conveniente dos aplicativos para smartphones e tablets. Era uma vez uma sociedade que esqueceu como se brinca sem estar conectada em onipresentes redes wi-fi.
E quando imaginávamos já não haver um final feliz possível para esse estado de coisas, quando sentíamos a imaginação infantil eternamente aprisionada aos programinhas eletrônicos, deu-se uma novidade um tanto inesperada. A Academia Americana de Pediatria, referência internacional na sua área, acaba de orientar formalmente seus profissionais a receitar brincadeiras diárias a todas as crianças. Moral da história: brincar é o melhor remédio.
O documento diz, ao pé da letra, como conclusão de suas dezoito páginas assinadas por cinco médicos: “Estimulem o aprendizado lúdico em todas as consultas com crianças em boas condições de saúde nos dois primeiros anos de vida”. As práticas indicadas, ressalve-se, passam longe dos dispositivos eletrônicos. São as chamadas “brincadeiras livres”, nas quais meninas e meninos se envolvem espontânea e ativamente. “O propósito é estimular o desenvolvimento mental e social das crianças”, disse a VEJA o pediatra Michael Yogman, o principal signatário da inédita diretriz.
Mas por quê, afinal, é fundamental brincar? As brincadeiras estimulam mecanismos no organismo infantil de uma forma que nenhum outro tipo de atividade é capaz de fazer. Elas mexem com as funções associadas ao processo de aprendizado, estimulam a linguagem, o relacionamento e a capacidade de resolução de problemas. O documento americano dividiu as atividades em grupos, cada qual com ação específica na saúde (veja o quadro na página anterior). Brincar de carrinho, por exemplo, desenvolve a coordenação, a capacidade de comunicação e o pensamento abstrato. Os jogos coletivos estimulam a inteligência emocional, atrelada à competência para aprender a perder, a ganhar e a arriscar. Evidentemente, mesmo uma aula aborrecida na escola e o debruçar-se diante das telas eletrônicas podem ser úteis, e não representam tempo perdido. Mas nada substitui a diversão que, no decorrer da civilização, aprendemos a gostar de praticar e ver (acompanhe, ao longo desta reportagem, representações de brincadeiras em telas de grandes artistas).
“Brincar estimula todos os sentidos”, diz o pediatra Mauro Fisberg, coordenador do Centro de Dificuldades Alimentares do Instituto Pensi, do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo. “E, quanto maior for o número de áreas ativadas no corpo da criança, melhor será a sua evolução.” Não é a primeira vez que a Academia Americana de Pediatria destaca a relevância do lúdico. No início dos anos 2000, a entidade recomendou as brincadeiras, mas então pelo efeito antissedentário e emagrecedor. Agora é completamente diferente. A recomendação inclui a petizada nem tão sedentária assim e os mais esbeltos. É quase como uma vacina.
O efeito das brincadeiras no desenvolvimento da criança ocorre durante toda a infância. Nos primeiros anos de vida, porém, ele é ainda maior. É nessa fase que o cérebro infantil apresenta intensa plasticidade, em que as redes formadas pelas dezenas de bilhões de neurônios se modificam a partir de novas experiências. Nos três primeiros anos de vida, o órgão realiza mais conexões neurais do que na idade adulta. Rapidamente, as conexões se multiplicam, chegam a 700 novas por segundo. A comunicação entre os neurônios se fortalece ou se enfraquece nessa fase conforme a situação a que a criança é exposta. A ação das brincadeiras nessa sinfonia cerebral altera estruturas moleculares no organismo.
Pesquisas listadas na nova orientação americana revelam que brincar refina a atividade do córtex pré-frontal, a região relacionada às características psicológicas e às funções executivas, e aumenta a neurogênese — a formação de neurônios — e a liberação de neurotransmissores ligados à sensação de prazer e bem-estar. Brincar é também atalho contra o stress. Estudo publicado no Journal of Child Psychology and Psychiatry, com crianças de 3 a 4 anos ansiosas com o início da pré-escola, mostrou que as que brincaram sozinhas ou com outras crianças durante quinze minutos apresentaram metade do nível de ansiedade daquelas que ouviram, passivamente, um professor contar uma história pelo mesmo período. Diz o pediatra Yogman: “O grande problema é que as crianças estão brincando cada vez menos”.
A escassez de brincadeiras é ancorada em estatísticas. Pesquisas realizadas nas duas últimas décadas revelam que o tempo livre das crianças diminuiu 25%. Apenas 50% delas saem para brincar ou passear. E, quando ficam em casa, é 100% garantido o que andam fazendo. Pequeninos de até 6 anos passam, em média, 4,5 horas em frente a algum dispositivo eletrônico — pelo menos o dobro do tempo considerado saudável. “Os aparelhos on-line não estão proibidos, o grande problema é o exagero”, diz Liubiana Arantes de Araújo, presidente do Departamento Científico de Desenvolvimento e Comportamento da Sociedade Brasileira de Pediatria. A ausência de interação física com outra pessoa é o grande ponto negativo na diversão com smartphones e tablets. Eles são um convite à passividade, à falta de traquejo social. Seria como um passe de varinha mágica imaginar que o relatório americano venha a mudar comportamentos do dia para a noite, mas era uma vez o tempo de tratar as brincadeiras tradicionais como coisa do passado. Não mais.
Publicado em VEJA de 5 de setembro de 2018, edição nº 2598