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Cleo Pires: “Acabou a brincadeira”

Agora cantora, a atriz considera o assassinato de Marielle Franco um marco e diz que, quando ela própria foi vítima de fake news, resolveu dando “porrada”

Por João Batista Jr.
Atualizado em 4 jun 2024, 16h31 - Publicado em 23 mar 2018, 06h00
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  • Cleo Pires nunca teve uma vida monótona. Único fruto do casamento de uma atriz de muito prestígio, Gloria Pires, com um cantor romântico de reconhecido poder de sedução, Fábio Jr., nasceu lindíssima e escolheu trilhar o mesmo caminho dos pais: viver sob os holofotes. Ela também chama de “pai” o seu padrasto, o cantor Orlando Morais. Depois de oito novelas e oito filmes no currículo, aos 35 anos decidiu tirar o Pires do nome artístico, virou apenas Cleo, e agora é cantora. Na entrevista a seguir, entre goles de café e amendoim, ela falou de música, de amores, de vícios — mas também de temas mais densos, como a execução da vereadora Marielle Franco e a propagação das fake news.

    Marielle, depois de morta, foi vítima de uma enxurrada de notícias falsas — disseram até que foi casada com um traficante, numa mentira evidente. Em 1998, espalhou-se que sua mãe, Gloria Pires, havia pegado você na cama com o seu padrasto, Orlando Morais. Como foi ser vítima de uma fake news quando essa expressão ainda nem existia? Antes se chamava boato, mas o nome pouco importa. Tínhamos acabado de voltar de uma viagem a Portugal e à Califórnia, onde visitamos Los Angeles, cidade pela qual nos apaixonamos. Pensamos, ainda nos Estados Unidos, em morar lá por um tempo. Quando chegamos ao Brasil, veio essa bomba: soubemos do que havia sido publicado. Foi muito difícil. Não conseguimos entender não só pela barbaridade, mas também pela disposição das pessoas em acreditar e odiar as vítimas da mentira.

    Como você reagiu? Eu, então com 15 anos, era muito nova e muito rebelde, então meti o pé na porta. Para a opinião pública, a mentira me pôs na posição de ninfeta doida, e meu pai virou um pedófilo e traidor da rainha do Brasil, a minha mãe. Eu não queria passar nenhum tipo de dor para o meu pai Orlando, pois ele já estava sofrendo demais. Se eu falasse alguma coisa, ele tomaria minhas dores e sofreria ainda mais. Resolvi à minha maneira. As pessoas que me xingavam na rua apanhavam. Dei porrada. Em outro campo, entramos com uma ação contra quem publicou. Ganhamos o processo e decidimos morar um tempo nos Estados Unidos.

    “Eu era uma retardatária, e a minha vida escolar parecia um jogo do Mario Kart: todo mundo cruzava a linha de chegada e eu ficava lá para trás. Repeti a 6ª e a 8ª séries”

    Ficou algum trauma dessa mentira? Poderia traumatizar uma menina de 15 anos, mas não quando se tem uma família sólida. Quando você escolhe amar aquelas pessoas, nada derruba a união.

    O assassinato de Marielle Franco mexeu com você? A minha opinião não tem a ver com partido, mas com empatia. Estou triste por ela, que teve a vida interrompida. Triste pela família e pela sociedade. O Rio perdeu uma pessoa que fazia diferença, que lutava por minorias. Esse episódio é um recado claro: acabou a brincadeira. Temos de fazer algo, não podemos mais ver a violência aumentar e ultrapassar todos os limites. Ela foi claramente executada.

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    Como soube do assassinato? Tenho um grupo de WhatsApp composto de mulheres engajadas, que discute assuntos como igualdade. A Marielle não estava no grupo, mas muitas de suas amigas, sim. Foi pelo aplicativo que eu soube do assassinato. No dia seguinte, meus pais foram à manifestação, saíram às ruas para pedir Justiça. Não pude comparecer devido a uma crise de sinusite, mas me posicionei pelas redes sociais.

    Você chama tanto o Fábio Jr., seu pai biológico, quanto o Orlando Morais, seu padrasto, de pai. Como é ter essa dupla paternidade? Não sei como é ter um só. Fiquei afastada uma época do meu pai Fábio. Tivemos muitas brigas. Eu achava que ele estava sendo tirano, injusto. Não gostava de como lidava com a minha mãe, com meus irmãos. A verdade é que nós dois somos radicais e temos a cabeça dura. No Dia dos Pais, dou parabéns aos dois.

    Você já declarou ter usado maconha. É a favor da legalização? Quanto mais se proíbe, menos eficiente é a proibição. Isso sem falar no poder paralelo, que causa mortes e oferece drogas ilegais de menor qualidade. O mais sensato, saudável e humano é descriminalizar.

    São comuns postagens suas usando pouca roupa. É para provocar seus seguidores? Sou uma artista, eu me exponho não só pela palavra, mas também pela estética. Quando posto algo assim é porque estou me achando bonita. Simples assim. Às vezes é uma estética mais crua, mais vulgar.

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    Como vê as mulheres que dizem que você “objetifica” o corpo feminino? Precisamos ter paciência umas com as outras, porque eu mesma já me vi machista em algumas situações, condenando a pessoa pelo visual. Não pode ser “bateu, levou”. Quem me xinga por usar uma roupa sensual é porque aprendeu isso lá atrás. De qualquer forma, é fundamental sabermos que cada uma é dona do próprio corpo. A vida se desenrola para onde damos atenção. Eu não foco a energia em quem só me critica.

    É verdade ou fake news: você tem compulsão por filmes pornográficos? Já gostei mais de filmes pornô, tive fases oscilantes com eles — assim como com o cigarro. Eu via todos os dias, era um certo vício.

    Tem atores pornô favoritos? Rocco Siffredi e Nacho Vidal, e as clássicas Tracy Lawrence e Janet Mason.

    Você citou duas atrizes. Já teve experiência sexual com mulheres? Tenho curiosidade a respeito de tudo, mas nunca bateu o tesão que me fizesse chegar a ficar com uma mulher.

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    Por que, aos 35 anos, decidiu tirar o sobrenome Pires do nome artístico? Em uma entrevista que dei aos 12 anos à revista Caras junto com o meu pai Fábio, eu disse que queria ser stripper ou cantora e ser chamada apenas de Cleo, como a Cher, que também tem apenas um nome. Cleo vem do grego “Gloria”. Quando me tornei atriz, meu namorado da época me disse assim: “Sua mãe foi mãe solteira por muitos anos, é uma atriz excelente, e você tem de homenageá-la”. Eu acatei naquele momento.

    Por que agora decidiu se lançar como cantora? Sou um paradoxo ambulante. Na infância, eu era uma retardatária. A minha vida escolar parecia um jogo de videogame do Mario Kart: todo mundo cruzava a linha de chegada e eu ficava lá para trás. Repeti a 6ª e a 8ª séries. Quando me mudei para os Estados Unidos, na adolescência, virei a melhor aluna da sala. Fiquei um ano e pouco lá fora. Na volta para o Brasil, passei a estudar em uma escola americana e comecei a namorar o baterista de uma banda de rock do colégio. Eu sempre ia aos ensaios, daí houve um problema com o cantor do grupo e me pediram para cantar. Topei, até porque eu escrevia letras desde meus 12 anos. A banda fazia basicamente cover de Hole, No Doubt e Marilyn Manson. Também tinha umas paradas de bandas de metal, a System of a Down. A música surgiu para mim antes da atuação. Mas sou insegura e sofri demais para cantar.

    Como a insegurança se manifestava? Fizemos alguns shows no colégio, mas isso tinha um peso para mim. Eu ficava paralisada, não conseguia fazer o dever de casa. Quando era jovem, me chamavam para uns testes de TV por eu ser filha da Gloria Pires. Eu topava, mas era um suplício. Tudo mudou em uma festa.

    O que aconteceu? A cineasta Monique Gardenberg me viu dentro do banheiro em uma festa na casa da Preta Gil. Ela disse que ficava me observando em vários lugares, lá no Rio, mas pensou em um papel para mim no filme Benjamim, de 2003. Amei esse approach de ser descoberta em uma festa. Por ser a Monique e um filme adaptado do livro homônimo de Chico Buarque, amei. Como tive a sorte de a Monique me achar e me lançar, fui indo para a atuação e deixei a música de lado.

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    Por quê? A música é uma fantasia secreta. Eu não contava a ninguém, ou pouca gente sabia. Não sou dessas pessoas que pegam o microfone na festa na casa de amigos. Com o tempo, essa fantasia foi aflorando e chegou a hora de encará-la para eu não ser uma pessoa frustrada.

    “Fiz tratamento com remédio devido à ansiedade. Na crise, eu me contorço inteira, a língua fica dura e a minha garganta fecha. Parece uma convulsão”

    Quando começou a tirar essa fantasia do armário? Não queria morrer sem me lançar profissionalmente. Em 2017, após terminar a novela Haja Coração, resolvi elaborar um plano. Dei minhas letras para alguém musicá-las, até porque não sei tocar nenhum instrumento. A maioria das minhas letras está em inglês, pois é a forma com que saem mais naturalmente os meus sentimentos. Tenho dificuldade de escrever músicas em português. Fui apresentada ao produtor Guto Guerra, que tinha recém-in­augurado um estúdio, deixei as letras com ele e fui viajar. Mas, cara, também quero que mais pessoas entendam as minhas músicas, falar com as pessoas do meu país. Daí conversamos com alguns compositores. Escrevi letras com Pablo Bispo, autor dos hits Essa Mina É Louca, com a Anitta, e K.O., com a Pabllo Vittar, além da Alice Caymmi. Meu EP de lançamento tem três músicas em inglês e duas em português.

    São músicas autobiográficas? Sim. Jungle Kid foi inspirada na minha infância, no excesso de liberdade, na falta de limites. Eu vivia com a minha mãe em uma casa no Recreio dos Bandeirantes, então bem vazio, que ficava ao lado da favela do Terreirão, e em Alphaville, onde morava meu pai Fábio. Com ele era um esquema de condomínio, coisa de playboy. Aí, quando o pai Orlando entrou na jogada, no fim dos anos 80, acrescentou outro tipo de cenário: fazendas, Goiânia, cavalos… A música tem esse contexto de uma forma mais poética.

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    Como foi a preparação para começar a cantar? Tomei uma decisão: parei de fumar há poucas semanas. Já sinto diferença na voz. A minha relação com o cigarro é como uma gangorra, vai e volta. É uma muleta para quem é inseguro. Certa vez, cortei o tabaco e comecei a comer loucamente, então voltei a fumar. Mas, como estou cantando, preciso de fôlego e resistência. Além disso, eu não estava gostando do cheiro no cabelo e na roupa. Agora só fumo cigarro eletrônico.

    Outra muleta seriam os remédios ansiolíticos? Fiz tratamento com remédios devido à ansiedade. Em 2016, um amigo morreu assassinado. Eu estava trabalhando muito e dormindo apenas três horas por noite. Na crise, eu me contorço inteira, a língua fica dura e a minha garganta fecha. Parece uma convulsão. Aí você toma trinta gotas de Rivotril e dá um soco no cérebro. Agora desmamei de remédio. Faço exercícios de meditação e respiração, nunca mais tive ataques.

    Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575

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