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A xerife do fumo

A brasileira que comanda a luta contra o tabaco na OMS diz que pesquisas enganosas, lobby, contrabando e corrupção freiam o combate ao cigarro no mundo

Por Monica Weinberg, de Genebra
Atualizado em 4 jun 2024, 16h20 - Publicado em 4 jan 2019, 07h00
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  • Doutora em saúde pública, a paulista Vera Luiza da Costa e Silva, de 66 anos, comanda a secretaria da Organização Mundial da Saúde (OMS) que cuida do tratado internacional para o controle do tabaco. Nessa posição, que ocupa desde 2014 (em sua segunda temporada na OMS), ela é dona de visão única sobre como 180 países e a União Europeia estão se mexendo para baixar o consumo de tabaco. Vera tem nas mãos a missão de estabelecer metas e acompanhá-las — uma extensão em escala global do trabalho que já fez no Brasil, onde desempenhou papel decisivo na consolidação das políticas de combate ao fumo. “Comecei atuando como pneumologista, no tratamento de câncer, mas entendi que poderia ser mais útil agindo na frente da prevenção da doença”, afirma Vera, uma não fumante convicta. Em seu escritório em Genebra, ela concedeu a entrevista a seguir.

    O número de fumantes no mundo ficou estável neste século, ao redor de 1,1 bilhão de pessoas. É um sinal de que a convenção global para o controle do tabaco não está conseguindo cumprir sua missão? Houve um avanço inequívoco na batalha contra o tabaco: em 2000, 27% da população mundial era de fumantes, hoje são 20%. A questão é que a população cresceu, o que fez o número absoluto permanecer no mesmo patamar de 1 bilhão. É um número alto mesmo, o que indica que essa guerra não é nada fácil. O ritmo de implantação das políticas de controle me preocupa, e por isso lanço um alerta global: mantida a velocidade atual, não será possível cravar a meta de reduzir o consumo de tabaco em 30% até 2025. A queda deve ficar em 22%.

    Quem não está fazendo a lição de casa? Um grupo de países está claramente atrasado na corrida contra o fumo. Na África e no Oriente Médio, por exemplo, as medidas têm sido bastante insuficientes para frear o consumo. No caso africano, a indústria anda em plena expansão. No Oriente Médio, onde em alguns países cerca de cinco de cada dez adultos homens fumam, pesa cada vez mais uma questão cultural na cruzada contra o tabaco. As mulheres estão lentamente entrando nesse mercado e, assim, abrindo um nicho até então inexplorado e promissor para a indústria do tabaco.

    Qual a sua avaliação sobre o trabalho de combate ao fumo no Brasil? O país registra um declínio extraordinário de fumantes graças a uma política que não foi interrompida ao sabor da troca de governantes, como é tão comum. Em 1989, no início da batalha contra o cigarro, mais de um terço dos adultos fumava; atualmente, são 11%. Esse resultado se deve a um monte de fatores que se demonstraram eficazes: veto à propaganda, advertência nos maços sobre os malefícios do cigarro, elevação de impostos, proibição de fumar em lugares fechados. Do ponto de vista histórico, são avanços relativamente recentes. Temos de lembrar que a indústria brasileira viveu sem regulamentação até as vésperas do século XXI.

    Apesar desses esforços, os brasileiros ainda estão entre os maiores consumidores de cigarro do planeta. Como sair dessa situação? Um ponto decisivo é atacar um dos grandes gargalos brasileiros — o contrabando. O cigarro ilegal entra à vontade pelas porosas fronteiras do país. Boa parte das vezes são os grandes contrabandistas de drogas que trazem também a carga de cigarros, tudo no mesmo caminhão. E eles vão ainda mais longe. Os traficantes têm a desfaçatez de proibir a venda dos maços lícitos em seus domínios e fomentam um efervescente comércio ilegal, em que o cigarro é vendido avulso, em bancas no meio da rua, a preços baixíssimos. Esse é um incentivo e tanto para a compra em todas as faixas etárias — inclusive entre crianças.

    O que a experiência mundial mostra ser exitoso no combate ao contrabando? Não se extermina essa praga apenas com iniciativas nacionais, mas via tratados de cooperação entre países. As fronteiras precisam ser vigiadas, as polícias têm de estar articuladas e a circulação da carga deve ser monitorada por um sistema de satélite — produto legal tem selo e pode ser rastreado. O Brasil acaba de ratificar o tratado internacional contra o comércio ilícito de cigarro, o que é uma boa e necessária sinalização. A estimativa em que mais confio indica que uma de cada três unidades vendidas no mercado brasileiro é fruto de contrabando. Um obstáculo para combatê-lo, por incrível que pareça, vem da própria indústria do tabaco, que, em alguma medida, tem interesse em manter o comércio ilegal.

    “As empresas perdem com a falsificação, não com o contrabando de cigarros, que pode ser muito rentável. Estima-se que uma de cada três unidades vendidas no Brasil é contrabandeada”

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    Mas a indústria não perde com o contrabando? As empresas perdem com a falsificação, não com o contrabando de cigarros, que pode ser muito rentável para elas. Vou dar um exemplo: o Paraguai, de onde vem parte importante do contrabando que entra no Brasil, produz muito além do que os paraguaios consomem — isso à base de impostos baixos, já prevendo que aquele excedente atravessará a fronteira de forma ilegal. A prova da presença de contrabando é a quantidade de maços sem fotos nem advertências exigidas pela legislação brasileira. É uma evidência de que não foram produzidos no Brasil. Um estudo bastante sólido mostra que aproximadamente 70% do mercado ilícito de cigarro no mundo é impulsionado pelas próprias empresas de tabaco. Quanto mais corrupto o país, maior é o raio de ação da indústria.

    A senhora pode dar exemplos de como a indústria age para promover o fumo? A interferência das empresas de tabaco se dá por meio de lobby, informações enganosas e corrupção. Seus executivos frequentam gabinetes e alimentam de dinheiro institutos aparentemente insuspeitos que, na verdade, advogam em favor da causa tabagista. A Fiocruz, órgão de pesquisa de excelência acima de qualquer suspeita, tem em seu site o Observatório sobre as Estratégias da Indústria do Tabaco no Brasil, onde lista os políticos e instituições que mais recebem dinheiro dessa indústria. Aparecem ali organizações como o Instituto Brasiliense de Direito Público (entidade da qual o ministro do STF Gilmar Mendes é um dos sócios fundadores) e até a Fundação para um Mundo Livre de Fumo, 100% financiada pela indústria com o objetivo de promover o uso de cigarros eletrônicos.

    Como funciona a rede de divulgação de fake news sobre o cigarro? Elas aparecem muitas vezes em pesquisas com fachada séria mas cheias de inverdades. Um desses casos ficou célebre na década de 80, época em que a OMS definiu a síndrome do edifício doente — um conjunto de doenças causadas pela poluição do ar em escritórios fechados. Estudos começaram a apontar falhas no sistema de ventilação e ar condicionado como os principais motores da síndrome, tirando assim o foco dos possíveis malefícios provocados pelo cigarro no ambiente de trabalho. Anos depois, soube-se que essas pesquisas eram financiadas pela indústria do tabaco.

    A ciência avançou no conhecimento sobre os danos causados ao fumante passivo? Muito. No caso dos adultos, já se sabe que a exposição frequente à fumaça do cigarro provoca efeitos adversos imediatos no sistema cardiovascular, doenças coronarianas e câncer de pulmão. Só o risco de câncer aumenta 90%. Bebês já começam a ser prejudicados na barriga da mãe que fuma ou que fica exposta à fumaça. A contaminação nesse caso se dá pela corrente sanguínea e pode retardar o crescimento dos pulmões e comprometer o desenvolvimento do cérebro do bebê. Depois do nascimento, o risco de ocorrerem infecções respiratórias e morte súbita se eleva. Além disso, o filho de pai ou mãe fumante é duas vezes mais propenso a começar a fumar entre 13 e 21 anos. Dos 7 milhões que morrem todo ano em decorrência do tabaco, quase 1 milhão são fumantes passivos — cerca de 15% do total.

    As novas gerações vêm aderindo à onda dos cigarros eletrônicos, sobretudo em países da Europa e nos Estados Unidos. Eles são mesmo menos nocivos? Esses cartuchos de nicotina de fato produzem menos substâncias tóxicas. Não envolvem fumaça, mas vapor, e ele é inalado. Não quer dizer que não façam mal. Muita gente defende a tese de que eles podem ser uma alternativa para quem não consegue ver-se livre do vício de jeito nenhum, mas aí a ciência recomenda cautela: ainda não há comprovação de que funcionem como substituto do cigarro comum.

    Por que não? A experiência de muitos países mostra que, às vezes, o fumante fica com os dois cigarros, o tradicional e o eletrônico. Outro problema se dá justamente com as novas gerações: as versões eletrônicas, cheias de sabores, são um convite para que crianças tomem contato com o fumo cada vez mais cedo. Existe até a turma que leva esses cigarros para a escola dentro do estojo.

    “Os cigarros eletrônicos, cheios de sabores, são um convite para que crianças tomem contato com o fumo cada vez mais cedo. Uma turma leva esses cigarros para a escola no estojo”

    Há hoje muitas crianças fumantes? No Brasil, 18% na faixa dos 13 aos 15 anos já experimentaram cigarro. Isso é chocante e traz preocupação. Quanto mais cedo se der esse contato, maior será o risco de a criança tornar-­se dependente.

    A mais recente geração de cigarros eletrônicos funciona à base de tabaco, não de nicotina. Como eles se situam na escala de risco à saúde? Esses são mais nocivos do que os que contêm apenas nicotina. Eles vêm atraindo jovens de países como Japão e Coreia do Sul pelo forte apelo tecnológico — alguns têm a forma de um pen drive e são vendidos em lojas de eletrônicos. Nos Estados Unidos, o FDA (órgão regulamentador da saúde) trata com extrema preocupação o aumento do uso dos cigarros eletrônicos. Em certos estados eles são legalizados, em outros não. No Brasil, apesar de toda a pressão sobre a Anvisa, são proibidos. Não considero essa conduta um excesso. O tabaco é o único produto legal que mata a metade de seus consumidores. É preciso regulamentar mesmo, para dificultar o consumo.

    O cigarro persiste como símbolo de riqueza e poder? Quando os estudos sobre os malefícios do cigarro começaram a se disseminar, nos anos 1960, a ideia do glamour foi se dissipando aos poucos, lentamente. A visão social sobre o tabagismo no Brasil modificou-se mesmo apenas no início deste século, seguindo uma tendência global. Trinta anos atrás, era chique fumar. Hoje, a rejeição ao cigarro ocorre justamente nas classes mais altas e escolarizadas, que têm acesso à informação. Sim, o número de fumantes ainda é estrondoso, e tem a ver com a própria natureza humana e sua busca incessante pelo alívio das dores e pelo prazer instantâneo. Tudo isso torna a batalha contra o fumo complexa, delicada e mais do que nunca necessária.

    Publicado em VEJA de 9 de janeiro de 2019, edição nº 2616

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