A volta da ideologia
O resultado do primeiro turno da eleição no Chile transforma uma consulta apática marcada pelo repúdio a Bachelet em uma disputa entre esquerda e direita
Bastaram três horas para que a indiferença que deu o tom ao primeiro turno da eleição presidencial se transformasse em comoção e fizesse aflorar um forte engajamento político no Chile. Quando as urnas foram fechadas, às 6 da tarde do domingo 19, não se ouvia um único comentário sobre política nas ruas. Às 9 da noite, quando ficou claro que o resultado seria diferente do apontado pelas pesquisas, não se falava em outra coisa. O que parecia um plebiscito, em que a população deixaria evidente sua insatisfação com o segundo mandato da presidente Michelle Bachelet, tornou-se uma animada briga ideológica entre a direita e a esquerda.
O favorito para o segundo turno, que acontecerá em 17 de dezembro, é o ex-presidente Sebastián Piñera, de centro-direita, que teve 37% dos votos. O bilionário, que governou o país de 2010 a 2014, entre os dois mandatos de Michelle Bachelet, conquistou votos com um discurso contrário às reformas educacional e tributária promovidas pela atual presidente e com a promessa de retomar o crescimento do PIB, que neste ano ficará abaixo de 2%. O segundo colocado foi o jornalista e senador Alejandro Guillier, de centro-esquerda, com 23%. Ele se propagandeou como independente, apesar de ter contado com o apoio de Bachelet e de vários de seus ministros e de divulgar que pretende aprofundar algumas de suas políticas.
Somados, porém, todos os candidatos de esquerda obtiveram 55% do total de votos. A responsável por esse êxito e principal surpresa das eleições foi a novata Beatriz Sánchez, também de esquerda. Há um ano, Sánchez, que também é jornalista, nem sequer pensava em entrar para a política. Respaldada pelos movimentos estudantis, ela aceitou disputar a Presidência, já que a lei proíbe menores de 40 anos de se candidatar (Sánchez tem 46). As estimativas sugeriam que ela teria 8% dos votos, mas abocanhou expressivos 20%.
Mesmo com a esquerda somando 55% dos votos, Guillier entra no segundo turno com chances de vitória bem mais escassas do que as de Piñera. “Muitos eleitores de Sánchez não passarão automaticamente para Guillier. Em sua grande maioria, eles acreditam que as propostas do senador não são suficientes e desejam um Estado ainda mais forte”, diz o cientista político Jorge Jaraquemada, da Fundação Jaime Guzmán. Para conquistar essas pessoas, Guillier precisaria levar seu programa ainda mais para a esquerda. O porém é que isso abriria um espaço no centro do espectro político, que poderia ser facilmente ocupado por Piñera. “Uma eleição normalmente se vence no centro”, diz o cientista político Jorge Ramírez, da Universidade Católica do Chile.
Guillier também terá de persuadir os chilenos a votar. Com voto facultativo desde 2013, apenas 49% dos eleitores foram às urnas no pleito presidencial anterior. Neste ano, o comparecimento caiu para 46% dos 14,3 milhões aptos a votar. Como tradicionalmente menos pessoas participam do segundo turno, Guillier precisará não apenas convencer que é uma melhor opção — e, sendo uma espécie de continuidade do impopular governo de Bachelet, não será tarefa fácil — como ainda terá de inspirar os eleitores a ponto de tirá-los de casa. O problema é que os chilenos já deixaram claro que só saem para votar quando o seu candidato está na frente.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558