O presidente Donald Trump não é do tipo que assume erros com tranquilidade ou reage a críticas de maneira construtiva. Mas, desta vez, o estrondo foi tão monumental que até ele precisou dar o braço a torcer. Faz um mês que a imprensa americana denuncia os casos de crianças sendo separadas de seus pais à força assim que eles são flagrados cruzando ilegalmente a fronteira dos Estados Unidos. O impacto foi tal que bastou um mês de denúncias para Trump recuar. Na quarta-feira 20, no auge da revolta à esquerda e à direita do espectro político americano e da repercussão internacional negativa, ele assinou um decreto em que promete acabar com a prática. “Teremos fronteiras fortes, muito fortes, mas vamos manter as famílias unidas”, disse Trump. “Não gostei da imagem nem do sentimento de ver as famílias sendo separadas.”
Desde o fim de abril, quando se declarou a tolerância zero para com os imigrantes clandestinos, mais de 2 300 crianças foram tiradas de seus pais ou dos parentes com quem entraram no país e levadas para abrigos exclusivos. Alguns desses locais eram antigos supermercados. Outros, bases militares adaptadas. No Estado do Texas, crianças são mantidas em espaços cercados que se assemelham a grandes gaiolas. Até vinte menores convivem no mesmo lugar. Bebês e crianças pequenas ficam juntos com os grandes. Eles choram, assustados, clamando por seus pais. “Temos uma orquestra aqui. Só falta um maestro”, disse um agente, que teve a fala gravada e divulgada pelo funcionário de uma ONG que vistoriava o local. Em um dos centros texanos, uma adolescente se viu obrigada a trocar a fralda de bebês que ela nem conhecia. Em outro caso, uma mãe foi apartada de sua filha enquanto a amamentava. Um pai hondurenho suicidou-se na prisão depois de ter sido isolado de sua mulher e seu filho.
Quarenta e nove crianças brasileiras, com idade entre 5 e 17 anos, foram localizadas por diplomatas e membros de ONGs em espaços como esses em seis estados. “Quando os primeiros meninos brasileiros chegaram, no fim de maio, percebi que a situação deles é a mais absurda e triste. Além de mim, ninguém falava português no abrigo. Por isso, eles se sentiam ainda mais perdidos e solitários”, disse a VEJA o cientista político americano Antar Davidson, filho de pai brasileiro e ex-funcionário de um abrigo para crianças imigrantes. Ele trabalhou no centro Estrella del Norte, em Tucson, no Arizona, entre 21 de fevereiro e 12 de junho. Pediu demissão por não concordar com a maneira como as crianças e os adolescentes eram tratados. “Vi três irmãos brasileiros que se abraçavam, chorando, porque achavam que a mãe deles tinha morrido. Os funcionários exigiram que eles parassem de se abraçar”, conta Antar.
Revoltados com a situação, o governador do Estado de Nova York e o da Carolina do Norte anunciaram que iriam chamar de volta seus soldados da Guarda Nacional que estivessem nas fronteiras. A reprovação extravasou as barreiras partidárias — e, aparentemente, até as conjugais. “O país deve impor o respeito à lei, mas também deve governar com o coração”, disse a primeira-dama Melania Trump, em entrevista ao canal CNN, ao comentar as cenas de crianças separadas dos pais na fronteira. Todas as quatro ex-primeiras-damas americanas vivas (Rosalynn Carter, Hillary Clinton, Laura Bush e Michelle Obama) manifestaram-se contra a política de Trump. O líder republicano no Senado, Mitch McConnell, chegou a falar em criar uma nova lei para garantir que as famílias permanecessem unidas. A ONU também emitiu duras críticas ao governo americano.
Trump desconversou dizendo que, ao determinar que as famílias fossem separadas, estava apenas cumprindo as leis, que tratam como crime entrar no país sem autorização. Ora, ninguém estava pedindo o descumprimento de lei alguma, mas um mínimo de compaixão e, inclusive, de respeito à lei internacional. “Existem inúmeras leis internacionais de direitos humanos que consideram a separação de famílias uma violação. Os Estados Unidos se tornaram uma nação fora da lei”, diz o historiador Elliott Young, professor na Lewis & Clark College em Portland, no Oregon.
Pela lei americana a que Trump se referiu, os imigrantes devem ser presos, mas é ilegal alojar crianças junto com eles. Uma decisão da Suprema Corte de 1997 proíbe que uma criança fique mais de vinte dias em centros de detenção de imigrantes. Depois desse prazo, ela deve ser liberada, conduzida a programas de assistência ou reunida a outro membro da família. Com isso, os menores de idade passaram a ser enviados a centros improvisados, enquanto os pais eram mantidos em prisões por meses a fio. Nos governos de George W. Bush e Barack Obama, preferia-se impor aos imigrantes punições administrativas. Eles eram liberados, às vezes após breve período de detenção, e ficavam de retornar a um tribunal para se defender. A maioria nunca mais aparecia. “Em muitos casos, imigrantes levam as crianças para os EUA na esperança de que serão tratados com mais leniência se forem pegos”, diz o cientista político Edward Alden, do Conselho de Relações Exteriores, em Nova York.
A mudança promovida por Trump consiste em processar criminalmente todos os estrangeiros que entram de forma ilegal no país. Agora, com a canetada que enfim proíbe a separação de pais e filhos, Trump deve gerar outro enguiço. Os Estados Unidos não têm espaços adequados para abrigar as famílias juntas por muito tempo. Como as crianças não podem ficar detidas por mais de vinte dias, mesmo que estejam com seus pais, Trump será questionado pela Justiça se o prazo se estender. Ninguém sabe como esse impasse será resolvido.
Ao endurecer sua política, o presidente americano queria, segundo disse, dissuadir outras famílias de entrar nos Estados Unidos. O problema é que muitos que hoje imigram saem da Guatemala, El Salvador e Honduras, fugindo das maiores taxas de homicídio do mundo. Não é uma escolha. Trata-se de desespero. “Se a situação nessas nações não melhorar, seus cidadãos continuarão tentando de tudo para mudar de vida nos EUA”, diz o advogado Alexandre Piquet, que tem escritório de imigração em Miami. Talvez Trump devesse olhar a questão da imigração sob outra ótica. Um estudo publicado na quarta-feira 20 pela revista científica americana Science concluiu que os países europeus que acolheram muitos imigrantes poderão ter um ganho de 0,32 ponto porcentual no PIB nos primeiros dois anos, graças ao aumento da mão de obra e do consumo. “Mesmo em maior prazo, cinco anos, a leva de refugiados não traz consequências econômicas negativas”, diz o economista francês Hippolyte d’Albis, líder do estudo. “No mínimo, o efeito é neutro, sendo que usualmente é benéfico.”
Com reportagem de Leonardo Coutinho e Sabrina Brito
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2018, edição nº 2588