Reza a tradição bíblica que os descendentes de Noé construíram uma enorme torre para tocar os céus. Insatisfeito com a ousadia dos humanos, Deus lançou-lhes um castigo, fazendo com que os homens passassem a falar diferentes idiomas e, assim, não mais se entendessem. Eis a origem do mito da Torre de Babel, que teria feito surgir os milhares de línguas que conhecemos hoje em dia. O médico polonês Lázaro Zamenhof (1859-1917) tentou resolver o problema ao formular o que seria um idioma universal, o esperanto, mas a ideia jamais vingou. Agora, Mark Zuckerberg, o bilionário americano fundador do Facebook, apresenta o que seria a mais eficaz solução para derrubar todas as barreiras linguísticas. “A capacidade de se comunicar com qualquer pessoa em qualquer idioma é um superpoder com o qual a humanidade sempre sonhou, e a inteligência artificial vai entregar isso”, disse o CEO da Meta, proprietária do Facebook, Instagram e WhatsApp, ao justificar sua investida.
Novos detalhes dos ambiciosos projetos de Zuckerberg, chamados No Language Left Behind e Universal Speech Translator, acabam de ser revelados. O primeiro pretende expandir os serviços de tradução de texto para todos os cantos do planeta, com 200 línguas cobertas — quase o dobro do que oferece o Google Tradutor —, beneficiando os chamados “idiomas de poucos recursos”, como línguas e dialetos africanos, asiáticos e indígenas, ou mesmo europeus, como islandês e maltês. Segundo a Meta, 20% da população mundial não é bem atendida nesse propósito. O segundo plano, ainda mais ousado, objetiva construir sistemas que traduzam em tempo real a fala de um idioma para outro. Com o auxílio de pesquisadores e falantes nativos, a Meta pretende desenvolver um sistema único, com traduções perfeitas de praticamente qualquer linguagem conhecida no planeta.
Por trás das questões humanitárias, existem, obviamente, intenções comerciais. Com tradução mais ampla em suas redes, a Meta pode direcionar melhor suas publicidades (fonte de 98% de suas receitas) e criar um diferencial para o seu grande projeto: os óculos de realidade aumentada que sustentarão o sonho do metaverso, o mundo virtual que replica a realidade por meio de dispositivos digitais, o Santo Graal da tecnologia, nas palavras do bilionário.
Se a promessa de Zuckerberg se confirmar, significará uma evolução notável das atuais ferramentas de tradução. Lançado em 2006, o Google Tradutor revolucionou o mercado e desde então novas iniciativas surgiram, especialmente vindas da Ásia. No início, os aplicativos de tradução utilizavam um processo estatístico, semelhante a uma consulta ao dicionário, o que ocasionava erros bizarros de concordância ou frases sem sentido, pois há palavras idênticas com diversos significados. Em 2016, o Google alterou o modelo para o chamado sistema neural, um conceito de aprendizagem de máquina que simula o comportamento dos neurônios humanos. Embora os algoritmos sejam úteis em viagens e ações corriqueiras, há imensos gargalos — e nada substitui o trabalho de tradutores e intérpretes profissionais. Há cinco anos, o próprio Facebook se viu em situação embaraçosa depois que um homem palestino foi preso em Israel após postar uma foto ao lado de uma escavadeira com a singela legenda “bom dia”, em árabe. A frase foi traduzida erroneamente pela rede social para “ataque-os” em hebraico e “machuque-os” em inglês.
As iniciativas da Meta são louváveis por seu aspecto inclusivo, mas os projetos em áudio levarão um bom tempo para prosperar. “Para traduzir uma fala é preciso interpretar a mensagem, passar para texto, para outra voz, e envolve questões de sotaque e falhas de nitidez”, diz a brasileira Sheila Castilho, especialista em tradução automática da Universidade Cidade de Dublin, na Irlanda. “É complexo, mas os avanços estão acontecendo.” Segundo Castilho, estamos longe da realidade narrada em O Guia do Mochileiro das Galáxias (1979), clássico de Douglas Adams, segundo o qual um tipo de peixe introduzido no ouvido de viajantes cósmicos permite a eles compreender todas as línguas. Zuckerberg quer ser o viajante da nova era — mas há uma longa estrada pela frente.
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799