Não foram poucas as vezes em que dom Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo emérito de Olinda e Recife e idealizador da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), explicou a origem de um apelido que o acompanhou durante boa parte de sua atividade religiosa: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, chamam-me de comunista”. De fato, esse cearense de olhos claros, parcialmente calvo e de compleição física mirrada foi um gigante na defesa dos oprimidos, o que bastou para que recebesse a inadequada alcunha. Ainda hoje, mais de duas décadas depois de sua morte, alguns radicais insistem em associá-lo ao comunismo. Nos últimos dias, a informação de que o processo para canonizá-lo avançava rapidamente no Vaticano foi o suficiente para que velhos e inaceitáveis ataques renascessem, desta vez amplificados pelo barulho das redes sociais. Não, dom Hélder não era comunista, mas um porta-voz aguerrido dos direitos humanos e da não violência — característica esta que move seus defensores em sua cruzada para santificá-lo.
Trata-se de trâmite complexo, que envolve pelo menos quatro etapas, nas quais o postulante acumula títulos à medida que cumpre certas exigências. Na primeira, o pedido de canonização é apresentado ao Dicastério das Causas dos Santos, um braço do Vaticano. Ao ser aceito, o contemplado recebe o título de Servo de Deus, já obtido por oitenta brasileiros (leia o quadro). Em seguida, uma documentação, que inclui testemunhos e documentos escritos, é enviada ao órgão da Cúria Romana responsável pelo processo. Parte integrante desse estágio, o decreto de Validade Jurídica de dom Hélder já foi emitido. O anúncio veio na semana passada, durante o 18º Congresso Eucarístico Nacional, em Pernambuco, com a presença do atual arcebispo de Olinda e Recife, dom Fernando Saburido, e de uma missão enviada pelo papa Francisco.
Agora, um relator será nomeado para elaborar o chamado “positio”, documento que deverá reunir as “virtudes heroicas cristãs” do candidato. Na sequência final, o vasto material será analisado por uma comissão de historiadores, teólogos, bispos e cardeais indicados pelo Vaticano. “Com a aprovação dessas comissões, o papa poderá declará-lo venerável”, disse o frei Jociel Gomes, um dos responsáveis pela documentação.
Os derradeiros passos — a beatificação e a canonização (pela qual já passaram 37 brasileiros) — levam mais tempo. Para o primeiro título, o postulante deve apresentar um milagre atribuído ao candidato, que em geral trata de uma cura ou algo semelhante. Para fechar o ciclo da santificação, um segundo milagre é necessário. No entanto, com a aceleração dos processos de canonização pelo papa Francisco, muitas vezes apenas um feito é suficiente — justamente o que está sendo avaliado agora. “A rigor, uma figura como dom Hélder não precisaria de milagre para que o processo andasse”, disse a VEJA a irmã Maria Vanda de Araújo, presidente do Conselho Curador do Instituto Dom Hélder Câmara, que participou da fase diocesana por meio da coleta de testemunhos. “O maior milagre, o maior testemunho que se pode ter dele é a sua vida.”
O papa Francisco conferiu velocidade ao rito, priorizando figuras com jornadas de vida que inspirem outras pessoas. “É o caso do monsenhor Romero, bispo de El Salvador, e do monge eremita francês Charles de Foucauld”, lembra Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Dom Hélder teve trajetória surpreendente. Na juventude, flertou com o integralismo, a versão brasileira do fascismo, e depois acabaria abraçando de vez o humanismo. Sua pregação incansável em prol dos mais pobres o levaria a ser indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz, marca jamais repetida por outro brasileiro. Agora, está perto de ser eternizado pelos católicos.
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817