O papa é pop: galeria no Vaticano exibirá obras contemporâneas
Mais do que um aceno de Francisco à modernidade, a iniciativa é um apelo por maior tolerância
Os museus do Vaticano abrigam algumas das obras mais extraordinárias já criadas pelas mãos humanas. As Salas de Rafael, célebre artista do Renascimento italiano, exibem impressionantes afrescos eternizados no teto e nas paredes. Nas galerias adjacentes, estátuas romanas, objetos etruscos e esculturas gregas deslumbram os visitantes. Como se sabe, o ponto alto é a Capela Sistina, pintada por gênios como Michelangelo e Botticelli. Agora, porém, os Museus do Vaticano ganharam companhias de tom mais pop. Por decisão do papa Francisco, a chamada Biblioteca Apostólica, antes acessível apenas a acadêmicos, passará a receber obras contemporâneas. O espaço foi inaugurado há alguns dias por Pietro Ruffo, um artista plástico de 43 anos relativamente desconhecido fora dos circuitos especializados. Em sua exposição Todos: Humanidade em Seu Caminho, Ruffo propõe uma nova cartografia, com mapas alegóricos que fazem uma reinterpretação crítica da geografia mundial. A ideia, diz o artista, é trazer os movimentos migratórios para o centro dos debates.
A exposição financiada pelos herdeiros do filantropo americano Kirk Kerkorian é dividida em quatro seções. Numa delas, a obra de Ruffo se mistura com tesouros como um planisfério chinês, um pergaminho astronômico indiano e astrolábios de papel do século XVI. Ruffo também recriou um dos mapas mais antigos da biblioteca, do Rio Nilo, feito pela exploradora otomana Evliya Çelebi no século XVII. O clímax da exposição ocorre na entrada da Sala Barberini, onde gravuras botânicas dão a sensação de entrar numa floresta tropical em pleno lar do catolicismo.
Ao reformar a biblioteca, o argentino Jorge Mario Bergoglio, o primeiro pontífice sul-americano, deu prosseguimento a um antiquíssimo expediente do catolicismo: promover a evangelização por meio da arte. A Igreja começou a construir seu acervo ainda na Idade Média (leia no quadro). Já no século XX, o período pós-Guerras Mundiais exigia uma reabertura cultural que foi posta em prática pelo papa Paulo VI. O pontífice inaugurou a Coleção de Arte Contemporânea, que hoje conta com obras de Van Gogh e Matisse. Agora, o papa Francisco foi ainda mais ousado ao trazer coleções, digamos, mais moderninhas, e que possuem evidente inclinação social.
O viés papal é sempre um reflexo de seu tempo. “Francisco precisa ser um sinal de contradição, a figura que denuncia algo que não esteja funcionando bem”, diz o sociólogo Francisco Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Em um período de grande otimismo progressista, como na virada do século XXI, é natural que João Paulo II e Bento XVI assumissem papel mais conservador. Hoje, com a volta de movimentos nacionalistas, xenofobia e ataques à democracia, o papa decidiu adotar um discurso mais inclusivo.”
Eis a novidade dessa exposição. Ao contrário de quando o Vaticano abriu uma Coleção de Arte Contemporânea ou restaurou a Capela Sistina para “atualizar” sua arte (e atrair mais turistas), desta vez Francisco busca um significado maior. Os mapas de Pietro são um apelo por mais tolerância a imigrantes e refugiados. “As culturas adoecem quando perdem a curiosidade, quando excluem em vez de integrar”, discursou Francisco na inauguração do novo espaço.
Dias depois da abertura, ele prestou uma homenagem aos jornalistas que denunciaram escândalos de abusos sexuais na Igreja e reforçou uma campanha de combate a notícias falsas. Em seus oito anos no comando do catolicismo, abriu debates inéditos sobre casais divorciados, união de pessoas do mesmo sexo e queimadas na Amazônia. “Ele está cumprindo o que lhe foi determinado na reunião de cardeais que antecedeu o conclave de 2013, a reforma da Cúria e a abertura da Igreja a questões contemporâneas”, diz o padre Luís Correa Lima, historiador da PUC-RJ. “Talvez alguns cardeais não imaginassem abertura tão grande, mas ele teve coragem.” O papa Francisco é mesmo pop.
Publicado em VEJA de 24 de novembro de 2021, edição nº 2765