— Você não é ninguém! — vociferou o diabo, quando estava sendo exorcizado do corpo de uma pessoa.
— Você é o pai da mentira, mas disse uma coisa verdadeira. Mas, como não estou aqui em meu nome, e sim em nome de Deus e da Igreja Católica, cale a boca e vá embora! — respondeu-lhe seu algoz.
E assim se fez, conforme conta o padre Rubens Miraglia, que rememora no diálogo acima um de seus inúmeros confrontos com Lúcifer. É difícil de acreditar? Miraglia não só acredita como fez do embate com o capeta a sua especialidade. Aos 58 anos, o sacerdote de olhos da cor do céu, fala calma de professor de catecismo e mais de 100 quilos distribuídos em cerca de 1,90 metro tornou-se a maior referência do ritual no Brasil dentro da Igreja Católica (e não pelo corpanzil). Na sua paróquia, a Maronita Nossa Senhora do Líbano, de Bauru, no interior de São Paulo, ele executa ao menos um rito de exorcismo por mês. Dá aulas sobre o assunto a leigos e párocos. Pessoas do país inteiro o procuram pedindo socorro. O padre atende todos, pacientemente. O motivo? Ele é o responsável pela Secretaria Linguística Portuguesa da Associação Internacional dos Exorcistas, instituição reconhecida pelo Vaticano que agrega cerca de 300 exorcistas no mundo, quinze deles no Brasil.
Sem se importar com os céticos de plantão, o padre orgulha-se da alta taxa de sucesso de suas intervenções (“Até hoje, nunca falhei”), incluindo situações das mais cabeludas. “Certa vez, uma mulher em transe chegou a minha igreja carregada pela família. Ela foi em minha direção com movimentos de uma cobra. Ao ver aquilo, gritei: ‘Pare com isso e se comporte! Tenha educação! Você não pode fazer o que quer aqui dentro! Você sabe caminhar!’.” Segundo Miraglia, ela se levantou e se sentou calmamente. Atendimentos como esse são feitos em seu apartamento no centro de Bauru ou, em situações mais dramáticas, com o possuído gritando ou aos prantos, na capela da igreja vazia. Um exorcismo pode levar de três dias, com sessões diárias, a anos, com sessões semanais. O ritual é discreto, tem duração de trinta a cinquenta minutos e consiste basicamente em orações e invocação a Deus e a Nossa Senhora. Os instrumentos de Miraglia se resumem a um crucifixo, água benta e o livro com as regras universais do exorcismo feito na crença católica. “A maior força vem de Deus, transmitida pelas minhas palavras”, acredita. Entre as normas, uma das principais é que o rito jamais pode ser executado em público, a não ser com a presença de familiares e um ajudante do padre — conduta bem diferente da prática protestante, muito criticada pelo clérigo de Bauru. “Já vi cenas televisionadas de gente batendo na cabeça da pessoa com uma Bíblia, como se o diabo pudesse ser expulso a pancadas”, indigna-se.
Outra diferença fundamental do trabalho realizado por ele, assegura Miraglia, é a triagem rigorosíssima de quem será ou não atendido. Nove em cada dez histórias são descartadas já na primeira conversa com o padre. “Se a solicitação para expulsar o demônio for da própria pessoa que me procura, por exemplo, desconfio. Como ele próprio vai querer sair? Considero o pedido quando vem de alguém próximo do possuído.” No total, apenas 2% de todos os casos são levados adiante por Miraglia. O grande desafio é distinguir a dita possessão de uma doença psiquiátrica. “Uma grande diferença entre um psicopata e um possuído é que o segundo obedece aos meus comandos”, afirma o padre, que mergulhou no assunto em 2013, motivado pela curiosidade dos fiéis. “As pessoas vinham me perguntar sobre o demônio, achavam que qualquer coisa errada ocorria por influência do diabo”, conta. Como não havia na época muitos padres atuando nessa área, Miraglia começou a se especializar no tema.
A despeito do número pequeno de exorcistas em atividade, a figura do diabo tem um significado profundo no catolicismo. A mitologia sobre a origem e o papel do anjo caído está presente em diversas passagens das Escrituras. “A figura do demônio mostra que o mal de fato existe e o católico se torna uma pessoa boa ao lutar contra ele recorrendo a Deus”, diz o sociólogo Francisco Borba Ribeiro Neto, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da PUC de São Paulo. A partir das modernizações trazidas pelo Concílio Vaticano II, na década de 60, essa ideia de dicotomia perdeu um pouco a relevância. Mas o tema voltou a ter destaque no pontificado de Francisco. O papa faz constantes referências ao diabo em suas homilias. Em Gaudete et Exsultate, um dos mais recentes documentos publicados, o sumo sacerdote argentino escreveu que “a santidade é uma luta constante contra o demônio”. Pelo visto, trabalho é o que não faltará a Miraglia.
Publicado em VEJA de 18 de dezembro de 2019, edição nº 2665