Construída para marcar a vitória dos portugueses sobre os índios caetés em setembro de 1535, na Capitania de Pernambuco, a Igreja dos Santos Cosme e Damião atravessou séculos como memória incômoda do massacre. Localizada no centro histórico de Igarassu, a 30 quilômetros do Recife, ela passou por muitas transformações ao longo de seus 486 anos de existência — o que lhe garante o título de mais antigo templo católico ainda de pé no Brasil. A restauração mais recente se iniciou há pouco mais de dois anos, antes de a pandemia se instalar no país. Em razão das restrições sanitárias, só ficou pronta neste mês. Embora o motivo de sua edificação seja lamentável, trata-se, sem dúvida, de um tesouro precioso, tombado desde 1951 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A construção começou ainda em 1535, a pedido de Duarte Coelho, donatário da Capitania de Pernambuco, em agradecimento ao desempenho bélico de seus soldados contra os indígenas, desfecho bem-sucedido (para os brancos, claro) que ele atribuiu a um milagre dos santos gêmeos — o que explica a devoção do templo. Organizada pelo preposto Afonso Gonçalves, a igreja feita originalmente em taipa, método primitivo que combina estrutura de madeira e barro, deu origem ao povoado, depois elevado à categoria de vila pela Coroa. O primeiro registro de sua existência é uma carta de 1548, enviada por Gonçalves ao rei português Dom João III, na qual pedia autorização para gastar os dízimos com a aquisição de objetos sagrados e ornamentos.
A primeira edificação, mais rudimentar, não resistiu à ação do tempo e ruiu de modo inapelável em 1595. No mesmo lugar, foi erguida uma outra, de pedra e cal, obedecendo à planta original. É essa que pode ser vista na tela pintada pelo holandês Frans Post na primeira metade do século XVII. Em 1755, a igreja passou pela primeira grande reforma, que mudou suas características arquitetônicas do maneirismo para o barroco: o frontão de linhas retas ganhou curvas, as janelas foram modificadas e os nichos de santos suprimidos. A última grande restauração, em 1958, devolveu sua fachada maneirista, manteve a torre barroca, e os altares retomaram as formas originais.
No trabalho feito entre 2020 e 2022, a igreja passou por uma nova e ampla reforma, que buscou restabelecer suas características do século XVII e também incluir modernizações necessárias, como a instalação de sistemas de prevenção contra incêndio, recuperação da rede elétrica e adaptação de acessos para portadores de necessidades especiais. Outras atualizações que miram na informação e no conforto dos visitantes incluem a criação de um espaço expositivo no primeiro andar da Casa Paroquial e a abertura de um café. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por meio da Lei de Incentivo à Cultura, destinou 4,2 milhões de reais para o projeto.
Além disso, todos os altares da igreja foram recuperados e exibem suas características de 1754, quando foram instalados, embora alguns deles tenham perdido mais da metade de sua matéria original e precisaram ser reconstruídos. Parte da pintura da abóboda foi preservada como informação histórica e não inteiramente refeita por questões de ordem técnica. Imagens e ornamentos também passaram pelo escrutínio dos técnicos. “O embelezamento da estrutura física possibilita ao fiel refazer sua ligação com o alto de uma forma mais fácil”, disse a VEJA o historiador Jorge Barreto, consultor da restauração. “Agora ficou prazeroso visitar a igreja, que está como se fosse nova.”
Embora o título de casa religiosa mais antiga do Brasil seja questionado por outro templo católico de Pernambuco, em Itamaracá, a de Igarassu continua sendo a principal referência nos registros oficiais dos órgãos de preservação. Iniciativas como essa, vale ressaltar, devem ser aplaudidas. A preservação de monumentos é atalho para aprender mais sobre a formação do país, modo inteligente de não apagarmos capítulos da civilização, mesmo que sejam travessias condenáveis.
Publicado em VEJA de 27 de abril de 2022, edição nº 2786