De costas para a ala conservadora da Igreja Católica, o papa Francisco anunciou na terça-feira 17 uma decisão histórica: a abolição do segredo pontifício das denúncias e processos relativos aos casos de abusos sexuais praticados por clérigos. O sigilo – levantado no dia em que Jorge Mario Bergoglio completou 83 anos, sem pompa e circunstância, com rápida passagem diante de fiéis — sempre serviu como escudo de malfeitos. A partir de agora, as autoridades religiosas devem compartilhar informações com a polícia e a Justiça. A Santa Sé também alterou uma norma relativa ao crime de pornografia infantil, que passa a abranger imagens e vídeos de menores de 18 anos — e não mais até os 14 anos, como mandava a norma. No pacote de mudanças, foi eliminada ainda a obrigatoriedade de o advogado e o procurador, em crimes desse tipo, serem sacerdotes. Negligenciado por séculos a fio, o crime de pedofilia começou a ser iluminado apenas em 2002, a partir de uma investigação do jornal The Boston Globe, que pararia nas telas do cinema com Spotlight — Oscar de melhor filme de 2016. As revelações foram tenebrosas: a Igreja local acobertava dezenas de padres pedófilos. Desde então, outros relatos apareceram em todo o mundo, inclusive no Brasil. Francisco, entronizado em 2013, não teve receio de navegar na contramão do alto escalão do Vaticano, e seguiu firme em sua peroração, dando nome aos bois, exigindo respostas. Em julho de 2018, o colégio cardinalício baniu Theodore McCarrick, arcebispo emérito de Washington, afogado em comprovações de posturas criminosas. Em fevereiro deste ano, o Santo Padre abriu em Roma um evento destinado a discutir o abuso sexual contra menores cometido por membros do clero, para o qual convidou as próprias vítimas. Três meses depois, determinou ser obrigatório que padres denunciassem às autoridades eclesiásticas as suspeitas de abusos sexuais. Mas o silêncio se mantinha, insidioso. Era preciso coragem para eliminá-lo — coragem que não parece faltar ao papa.