O pontífice Bento XVI é personagem de dois ineditismos históricos. Foi o primeiro em 600 anos de travessia da Igreja Católica a renunciar ao trono de Pedro, em fevereiro de 2013. E será o único, até agora, a ter sido enterrado, com pompa e circunstância, por um Santo Padre, o argentino Francisco. O ex-cardeal alemão Joseph Ratzinger morreu em 31 de dezembro de 2022, aos 95 anos, no mosteiro Mater Ecclesiae, do Vaticano, depois de quase uma década na improvável figura de papa emérito. Disse Jorge Mario Bergoglio: “Gratidão a Deus por presenteá-lo à Igreja e ao mundo”.
Ratzinger foi influentíssimo na Igreja muito antes de ser eleito pelo conclave, em 2005. No início de seu caminho teológico, na juventude, tinha um olhar moderno, contra o celibato obrigatório e na contramão da encíclica que condenava a pílula contraceptiva. Com o tempo, contudo, e sobretudo na função de chefe da Congregação para a Doutrina da Fé, conhecida no passado como o Santo Ofício da Inquisição, atrelou-se ao conservadorismo. Agia de mãos dadas com João Paulo II para defender, com inteligência e cultura de um teólogo que dominava seis idiomas, a visão mais tradicional de como devem ser conduzidas as questões religiosas e morais do catolicismo. Ressalte-se que, apesar da suposta amizade com seu antecessor, Francisco desmanchou tudo o que ele fez, inclusive a abertura para a missa tridentina, a rezada em latim, cuja substituição depois do Concílio Vaticano II provocou dissidências que chegam aos dias atuais. Se o edifício religioso de Bento XVI ficou para trás, para desânimo e desconforto da ala tradicionalista que o acompanhava e defendia, uma sombra parece não se dissipar, e durante séculos ecoará nas análises dos especialistas e nas mentes dos fiéis: por que, afinal de contas, ele desistiu?
“Razão e fé se ajudam mutuamente. Somente juntas elas poderão salvar o homem. Atraída pelo puramente técnico, a razão sem fé está destinada a se perder na ilusão de sua própria onipotência.”
BENTO XVI, na encíclica Caridade na Verdade, de 2009
Há algumas hipóteses, que o próprio Ratzinger nunca confirmou. Os casos de pedofilia, em 2013, se espalhavam no seio da Igreja — incomodado, o papa mantinha-se em silêncio. Havia um outro escândalo, de corrupção, envolvendo o Instituto para as Obras de Religião (IOR) — o banco do Vaticano. A Justiça italiana abriu uma investigação sobre o IOR e bloqueou 23 milhões de euros de suas contas, por suspeita de violação das normas do sistema financeiro contra lavagem de dinheiro. Uma terceira onda foi o escândalo do Vatileaks, vazamento de documentos sigilosos feito pelo próprio mordomo de Bento XVI, Paolo Gabriele. O funcionário disse que queria provar a existência de “mal e corrupção por toda parte na Igreja”, embora o papa não fosse “suficientemente informado”.
A lama, supostamente, teria devorado as forças de Bento XVI, que anunciou sua decisão com rara e espantosa firmeza: “Caros irmãos e irmãs, como sabem eu decidi renunciar ao Ministério que o Senhor me encarregou em 19 de abril de 2005. Fiz isso em plena liberdade e pelo bem da Igreja. Depois de ter rezado muito e examinado diante de Deus a minha consciência, sei muito bem da gravidade do meu ato, mas sei também que não tenho mais condições de executar o Ministério Petrino com a força que isso requer”. A passagem de Bento XVI pela Santa Sé é um dos grandes enigmas da história da religião, a um só tempo fascinante e impenetrável.
Publicado em VEJA de 11 de janeiro de 2023, edição nº 2823