A pouco mais de um mês do início da terceira gestão de Luiz Inácio Lula da Silva na Presidência da República, o futuro governo já está no centro da movimentação dos principais líderes do Congresso. Antes mesmo de tomar posse, Lula tem urgentes prioridades para tocar no Legislativo, motivo pelo qual acelera a articulação para a formação de uma base que lhe permita aprovar as suas demandas e se fortalecer politicamente para governar. Com a necessidade de aprovação de emendas à Constituição, como a PEC da Transição, que exige 308 votos em dois turnos, sendo que a sua coligação elegeu apenas 122 deputados, o petista sabe que tem de negociar com gente que não o apoiou durante a campanha. O futuro ocupante do Palácio do Planalto tem, no entanto, um fator a facilitar a sua missão: a maioria das siglas centristas, mesmo as que foram contra a candidatura de Lula, está dividida sobre apoiar ou não o governo, incluindo as legendas do Centrão, o bloco parlamentar que foi fundamental na sustentação de Jair Bolsonaro.
As articulações necessárias já estão em curso e o caminho mais fácil para a ampliação do apoio passa pelos partidos que ficaram neutros na disputa presidencial, como União Brasil e PSD, ou que embarcaram na candidatura petista no segundo turno, como o MDB. As três legendas, que negociam à luz do dia para integrar a base aliada, somam 143 deputados eleitos, mas não abraçariam o governo totalmente porque abrigam alas bolsonaristas ou parlamentares que preferem ficar na oposição. Para compensar, há espaço para atrair lulistas nos três partidos do Centrão, em especial no PP (47 deputados) e Republicanos (41), mas também no PL, cujo presidente, Valdemar Costa Neto, anunciou que seria oposição — o partido de Bolsonaro fez a maior bancada (99).
Os casos envolvendo os partidos do Centrão, que integraram formalmente a coligação derrotada de Bolsonaro à reeleição, são emblemáticos do peso da realpolitik em Brasília. O PP prioriza a reeleição do presidente da Câmara, Arthur Lira (AL), liderança da qual Lula e o PT estão cada vez mais próximos. Lira tem sido o interlocutor da sigla junto ao entorno do presidente eleito e já deixou claro que vai atuar pela aprovação da PEC da Transição, prioridade para abrir espaço fiscal para custear o novo Bolsa Família. Entre aliados do petista, um apoio à recondução de Lira é visto como cada vez mais próximo.
Apesar do acordo iminente, o mais provável é que o partido caminhe dividido no Congresso, mesmo com Lira ao lado de Lula. Outro cacique da legenda, o ministro e senador licenciado Ciro Nogueira, por exemplo, tem prometido nos bastidores que fará quatro anos de oposição ao petista, de quem costumava ser cabo eleitoral no Piauí. Mas será voz isolada entre os nordestinos. “Acredito que os deputados mais ligados ao Nordeste não terão dificuldade para apoiar o governo, mas os das regiões Sul e Sudeste poderão ter. Houve uma divisão ideológica muito clara”, acredita o deputado Claudio Cajado (BA), presidente em exercício do PP. Ele e outras lideranças do partido não descartam que, diante da divisão, uma parte da bancada se alinhe à base governista e a outra, não. “Em todos os partidos isso acontece”, minimiza Cajado.
A estratégia de não declarar oposição a Lula nos próximos quatro anos, apesar de abrigar expoentes do bolsonarismo, será o rumo do Republicanos. A legenda rendeu à direita o seu maior triunfo nas eleições — a vitória de Tarcísio de Freitas ao governo de São Paulo — e emplacou bolsonaristas de peso no Senado, como Hamilton Mourão (RS) e Damares Alves (DF). Apesar disso, a sigla decidiu na semana passada, por unanimidade, adotar no Congresso uma postura “independente”, “sem se negar ao diálogo e à colaboração”, eventualmente apoiando pautas do governo. Embora se mantenha distante da base lulista, o Republicanos, que é ligado à Igreja Universal, tem parlamentares simpáticos ao petista. “Nós nos consolidamos como conservadores nos costumes e liberais na economia, são essas as diretrizes que norteiam nossas decisões. Ser independente não significa cada um votar de um jeito”, diz o líder do Republicanos na Câmara, deputado Vinicius Carvalho (SP), ele próprio um pastor licenciado da igreja do bispo Edir Macedo.
Fora da antiga base bolsonarista, as perspectivas para Lula são animadoras. O União Brasil tem o seu dirigente máximo, o deputado Luciano Bivar (PE), fazendo tratativas diretas com a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, por uma adesão à base aliada. Líderes importantes do partido, como o ex-prefeito de Salvador ACM Neto e o senador Davi Alcolumbre (AP), não têm resistido aos diálogos, mas uma aliança formal é vista internamente com algum ceticismo. O motivo é a existência de uma expressiva ala antipetista, a começar pelos governadores Ronaldo Caiado (GO) e Mauro Mendes (MT), de dois estados fortemente bolsonaristas. Mas entre governadores eleitos pode falar mais forte a necessidade de uma boa relação com a União. “Tenho um alinhamento com Bolsonaro, mas preciso agir de forma pragmática, de forma a manter a comunicação com Brasília”, pondera o governador reeleito do Amazonas, Wilson Lima, de olho em pautas caras ao estado, como a Zona Franca de Manaus, a preservação ambiental e a proteção de fronteiras. Como fazer oposição a Lula está descartado na sigla, uma posição “colaborativa” com o novo governo, declarando independência no Congresso, é vista como a mais viável atualmente para acomodar as divergências internas.
Outra sigla determinante para o maior sucesso eleitoral do bolsonarismo em 2022, o PSD do ex-ministro Gilberto Kassab, que apoiou Tarcísio em São Paulo, tem nomes de peso alinhados à direita, como o governador reeleito do Paraná, Ratinho Junior. A sigla, no entanto, entrou de cabeça na equipe de transição de Lula, com treze parlamentares incluídos nos grupos técnicos e o líder da bancada na Câmara, Antonio Brito, no conselho político — Brito é da Bahia, onde o PSD é sócio de sucessivos governos do PT. Além disso, o partido tem como prioridade a recondução ao cargo do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (MG), para a qual conta com o apoio do PT e da esquerda — o endosso petista a Pacheco é uma das condições de Kassab para aderir ao governo Lula, com quem sempre manteve boas relações.
Aliado importante em outros tempos, mas transformado em inimigo no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, o MDB também tem membros na montagem do novo governo, entre os quais a estrela da companhia, a senadora e ex-presidenciável Simone Tebet (MS). Também fracionado entre as alas lulista e bolsonarista, o partido, conhecido por ser uma federação de caciques regionais, tem em suas fileiras focos de resistência à união com Lula e alguns pontos que demandam atenção, como o fato de o senador Renan Calheiros (AL) criticar a aproximação de Lula com Arthur Lira, de quem é um notório desafeto — “bombeiros” do entorno do presidente eleito já entraram em campo para evitar que a encarniçada rixa entre os dois caciques transborde de Alagoas para Brasília.
O maior sinal de dor de cabeça para Lula, no entanto, vem do PL, que até agora foi a única legenda a declarar oposição ao futuro presidente. Não é pouca coisa, claro, já que o partido foi o maior vencedor da eleição ao Congresso. Mas há muitas dúvidas ainda sobre quanto a sigla e sua quase centena de deputados de fato permanecerão longe do governo. Quem conhece Valdemar Costa Neto tem avaliado reservadamente que, em condições normais de temperatura e pressão, ele seria o primeiro da fila à porta do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), local onde ocorre a transição, para negociar os termos de uma adesão imediata a Lula. Diante do peso dos aliados de Bolsonaro na legenda e do risco de uma rebelião interna, no entanto, o cacique tem feito agrados a essa ala, incluindo o apoio à tese golpista de que houve irregularidade na eleição (veja a reportagem na pág. 28). O presidente do PL sabe que a tentativa de anular parte expressiva dos votos em razão de supostas falhas nas urnas tem chance zero de prosperar, mas a levou adiante por causa do presidente. Os bolsonaristas, contudo, não estão sozinhos na bancada do PL. Eles têm como colegas deputados da linha que se poderia chamar de “Centrão raiz”, versados em trocar apoio por espaços de poder e de quem pode-se esperar alguma tentativa de aproximação com Lula.
A adesão de partidos de centro aos governos sempre foi a regra em Brasília, naquilo que se convencionou chamar de “presidencialismo de cooptação”. Assim ocorreu nos governos FHC, Lula e Dilma Rousseff, em alianças que, por vezes, forjaram monumentais esquemas de corrupção (mensalão, petrolão), bem como nos de Michel Temer e Bolsonaro — neste último, particularmente, o grupo fisiológico ganhou exponencial força a partir do manuseio das emendas de relator, o notório orçamento secreto. “Os partidos não ideológicos têm uma tendência enorme a ser cooptados pelo governo, ou se deixarem cooptar. Mas o Congresso que Lula encontrou em 2003 tinha um poder, o atual tem muito mais”, analisa o cientista político Rubens Figueiredo.
O Parlamento, de fato, tem mais poder, mas os primeiros sinais da composição da base do novo governo mostram que o jogo segue muito parecido. Embora afetados pela polarização, que deve provocar divisões internas, os partidos de centro, na maioria, devem mesmo caminhar com os pés em duas canoas ao longo do próximo mandato. Um retrato de como a falta de qualquer orientação programática na selva partidária brasileira, unida às conveniências políticas de cada excelência, continua produzindo a geleia geral que sempre notabilizou a política brasileira. Sai governo, entra governo — e os hábitos continuam os mesmos.
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817