Desde a redemocratização, as eleições presidenciais criaram uma máxima até hoje não contrariada: o ocupante do Palácio do Planalto que tenta a reeleição sempre consegue a vitória, muitas vezes, de forma até relativamente tranquila. Bolsonaro, no entanto, começa a chegar a um ponto próximo de se candidatar seriamente a quebrar essa escrita. Ele acumula um desgaste preocupante para a sua pretensão de obter um novo mandato: com 48% de ruim e péssimo e 63% de desaprovação a sua gestão, segundo recente pesquisa CNT/MDA, tem a pior avaliação de um presidente eleito no ano anterior à sucessão desde 2001, quando o instituto começou a série histórica. Ou seja, na comparação com os antecessores que conseguiram mais quatro anos no emprego, Bolsonaro é o que se encontra em pior situação nesse ponto da trajetória.
O momento de baixa coincide com o da ascensão de seu principal rival do momento, o ex-presidente Lula. De acordo com o levantamento CNT/MDA, o petista tem hoje 15 pontos de vantagem sobre o atual ocupante do Palácio do Planalto. Se não bastasse, um terço dos entrevistados declara que não votaria em nenhum dos dois — em tese, tal porcentual abre um caminho para o crescimento de um candidato da chamada terceira via. A situação chegou a tal ponto que alguns já arriscam a sussurrar nos bastidores do mundo da política uma previsão ainda mais catastrófica sobre o futuro do capitão: a possibilidade de seu prestígio continuar derretendo a ponto de tirá-lo até da disputa do segundo turno em 2022 — o que seria, evidentemente, outro fato inédito.
A fase delicada em que se encontra o presidente não é fruto do acaso, mas da tempestade perfeita que se abateu sobre ele (basicamente formulada pelo próprio). A pandemia de Covid-19, embora com sinais nítidos de desaceleração, ainda mata mais de 1 000 pessoas por dia e parte dessa conta trágica cabe ao negacionismo do capitão. Na esteira da emergência sanitária, começaram também a surgir denúncias envolvendo a compra de vacinas pelo Ministério da Saúde, que deram uma nova tração à CPI da Pandemia e já resultaram na abertura de um inquérito contra o presidente por prevaricação no STF. A fissura no discurso anticorrupção ganhou ainda outra rachadinha (perdão pelo trocadilho) com a divulgação nos últimos dias pelo portal UOL de áudios nos quais uma ex-cunhada de Bolsonaro, Andrea Siqueira Valle, sugere que o presidente foi o precursor dentro de sua família na prática de receber um cashback do salário de seus funcionários de gabinete antes de o seu filho Zero Um, o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ), ser acusado de gatunagem semelhante. De quebra, o ambiente político cada vez mais hostil em Brasília encontra eco na volta dos manifestantes às ruas para pedir o seu impeachment — os primeiros atos capitaneados pela esquerda ameaçam ganhar volume com a anunciada adesão de partidos de centro e movimentos políticos que antes emprestavam apoio ao governo.
Em meio a tantas dificuldades, riscos eleitorais variados começaram a surgir no horizonte do barco governista. Nada menos que 61,8% dos eleitores afirmaram que não votariam nele de jeito nenhum — a maior rejeição entre todos os nomes. Além disso, 45,1% disseram que o “mais importante” em 2022 é que o atual presidente não seja reeleito. Lula surge hoje como o favorito e parece difícil evitar a polarização entre os dois na campanha. Atrás deles, nenhum dos postulantes consegue alcançar a casa de dois dígitos de intenções de votos. Aparecem um pouco melhores na pesquisa da CNT/MDA Ciro Gomes (PDT) e Sergio Moro, sendo que o ex-juiz não definiu ainda se entrará na disputa (o mais provável é que não) — bem atrás surgem o governador João Doria (PSDB) e o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (DEM). “Há eleitor de centro e há o eleitor ‘nem-nem’, que não quer Lula nem Bolsonaro. O que não tem é candidato para isso, não apareceu”, avalia o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches.
Em meio a tantos golpes que vão machucando seriamente sua popularidade, o governo, claro, busca alguma reação — além de manifestar preocupação, vem colocando em prática estratégias para sair das cordas do ringue político. A mais controversa delas envolve o uso de um velho recurso do bolsonarismo: tentar ganhar o discurso nas redes sociais por meio da tática diversionista de introduzir temas alheios à crise política. Nessa linha, vale tudo: falar das obras do governo (mesmo que sejam coisas modestas como uma ponte ou uma barragem), atacar a CPI (que chamam de “CPI do Lula”), agitar o velho fantasma da ameaça comunista com uma eventual vitória do PT e defender a todo custo sandices golpistas como a volta do voto impresso. Com frequência, apelam, como na segunda 28, quando o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), o filho Zero Dois do presidente, postou uma foto do pai sedado, sem camisa, no hospital, quando se recuperava da facada que recebeu em 2018 — a postagem foi feita após a semana crítica do depoimento do deputado Luis Miranda, que indicou suspeitas de irregularidades na compra da vacina Covaxin pelo Ministério da Saúde. “A imagem é chocante? Sim. Até que ponto a vagabundagem vai mandar nesse país? É preciso mostrar, lamentavelmente!”, escreveu. Uma semana depois, com mensagens truncadas e igualmente delirantes, foi a vez de o presidente Bolsonaro atacar, falando sobre uma suposta autoridade que estaria sendo chantageada por um agente secreto identificado como “Daniel”. Aos influenciadores bolsonaristas coube desvendar o “enigma” apontando que “Daniel” era o ex-ministro José Dirceu — claro que nada disso foi comprovado. “É o que chamam na psicologia política de viés cognitivo. Você faz as pessoas prestarem atenção naquilo que lhe interessa”, diz Felipe Nunes, professor de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais.
Além do campo de batalha das redes sociais, Bolsonaro vai recorrer novamente às políticas populistas que garantiram seu prestígio em alta no ano passado, mesmo em meio à pandemia. Em paralelo à prorrogação do pagamento do auxílio emergencial por mais três meses, ele prepara a remodelação do Bolsa Família, que terá outro nome e pagará um benefício médio maior, em torno de 300 reais. Outra frente em curso no esforço de recuperação de imagem do Palácio do Planalto envolve acelerar as medidas estruturantes capazes de criar condições para a retomada sustentável do crescimento. Ainda que a passos trôpegos, a reforma administrativa parece ter voltado para a lista de prioridades, assim como o programa de privatização, antiga promessa de campanha que finalmente começa a ganhar alguma tração. A bola da vez é o projeto de lei necessário para pôr em marcha a venda dos Correios. Depois da Eletrobras, será a segunda ação desestatizante de vulto do governo. A reforma tributária também entrou na pauta, mas a proposta inicial foi tão desastrosa que rapidamente obrigou o ministro da Economia, Paulo Guedes, a ir a campo para prometer ajustes importantes.
Mesmo com exageros populistas e crises no mercado provocadas pelas constantes atitudes intempestivas do presidente, a aposta do Palácio do Planalto é que as engrenagens de crescimento do país estarão funcionando bem melhor no ano da campanha à reeleição. Alguns indicadores econômicos corroboram realmente a ideia de que o pior já passou, a exemplo da evolução do PIB acima do esperado no primeiro trimestre (1,2%). Mais até do que a volta da vida normal após a pandemia, a retomada da economia pode ter, de fato, um peso decisivo na corrida ao Palácio do Planalto. Uma sondagem exclusiva feita para VEJA pelo Paraná Pesquisas mostra que o bolso da população deve ser novamente em 2022 o maior influenciador de voto. O levantamento pediu aos entrevistados que atribuíssem notas de 1 a 10 ao nível de importância a sete temas na hora de escolher o presidente. Geração de empregos (8,7) e recuperação da economia (8,6) receberam os maiores números (veja o quadro) — as mortes na pandemia ficaram em último. Em pesquisa encomendada pelo DEM ao Instituto Ipsos, 59% citaram o desemprego como o maior problema do país e 50%, o acesso à saúde.
Mas ainda assim é preciso que o bolsonarismo tenha cuidado no otimismo excessivo com uma virada na situação para 2022 ancorada na retomada econômica e no refluxo da pandemia. Apesar dos sinais que apontam fortemente no sentido de uma recuperação, com projeções do mercado financeiro para um crescimento de até 5% em 2021, ela pode não ter o efeito esperado pelo Palácio do Planalto caso a inflação siga acelerando e afetando o poder de compra do brasileiro. O acumulado do IPCA nos doze meses encerrados em junho foi de 8,35%, ante uma meta de 3,75% no ano. Esse risco pode ser agravado em razão da ameaça cada vez maior de uma crise hídrica, que levaria ao reajuste da tarifa de energia elétrica e à possibilidade de racionamento, e dos persistentes números ruins do desemprego, que hoje atinge 14,8 milhões de brasileiros, um recorde histórico. Embora o número de mortos na pandemia e a velocidade na vacinação tenham tido as menores notas no levantamento do Paraná Pesquisas, o presidente também certamente se verá confrontado na campanha com suas responsabilidades pelo descalabro em meio à crise sanitária, além dos efeitos econômicos decorrentes da sua negligência com a imunização da população. “Alguns talvez enxerguem o mau comportamento em relação à gestão econômica da pandemia como decorrência da demora em comprar e distribuir vacinas”, diz o cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getulio Vargas.
A batalha, porém, será longa. Apesar das mobilizações de rua crescentes pela sua saída, analistas e políticos acham inviável, ao menos por ora, que o presidente tenha o seu mandato abreviado por um impeachment (leia a coluna de Murillo Aragão, na pág. 45). “Não vejo ainda nenhum clima para isso”, resume o deputado Marcelo Ramos (PL-AM), vice-presidente da Câmara e aliado de primeira hora de Arthur Lira (PP-AL), o presidente da Casa, que não gosta nem de ouvir falar em dar andamento a qualquer um dos mais de 120 pedidos de afastamento que estão em sua gaveta. No argumento dos governistas, o discurso pró-cassação só voltou a ser aventado agora porque os adversários perceberam que o presidente não está tão enfraquecido assim e tem grande potencial de recuperar a sua popularidade. Nesse aspecto, até a oposição concorda e, por isso, tem adiantado as datas das manifestações e aproveitado este momento de crise para fazer os ataques mais incisivos. De um lado ou de outro, a percepção política é que a vida da população começará a voltar ao normal com o avanço da vacinação e os desmandos na pandemia virarão coisa do passado. “Quem reelege presidente é a economia. Se as pessoas estiverem com o sentimento de que a vida está melhorando, com mais condições de comprar alimentos e de melhorar nível salarial, é muito difícil optarem por algo diferente”, aposta o senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP e líder do Centrão.
Em termos de política, falta uma eternidade para 2022. Até lá, o debate eleitoral poderá abarcar uma miríade de temas que irão muito além daqueles que hoje impingem desgaste ao presidente — ou que estarão em outro patamar, como a pandemia e a economia. Mas, com tanta confusão e teimosia, um potencial desafio para Bolsonaro talvez seja mostrar que eventuais avanços do país foram conquistados pela sua liderança — e não apesar dela. Erram também todos aqueles que olham os números atuais e concluem que Bolsonaro está morto. Além de ainda representar o papel de mito para uma fatia nada desprezível de fãs radicais (as motociatas de apoio são um exemplo disso), o presidente dispõe da máquina do governo e de armas para reverter a situação. Mas isso dependerá da sua capacidade de superar obstáculos consideráveis até lá, incluindo o enfrentamento daquela que promete ser uma das mais duras campanhas eleitorais da história.
Com reportagem de Caíque Alencar
Publicado em VEJA de 14 de julho de 2021, edição nº 2746