Apesar de ter exercido mandatos parlamentares por quase trinta anos, Jair Bolsonaro marcou sua carreira política com discursos antidemocráticos e de exaltação à ditadura. À frente da Presidência da República, apostou numa estratégia de tensão permanente com as instituições, sobretudo com o Supremo Tribunal Federal (STF) e a Justiça Eleitoral. Na última campanha, adicionou um item perigoso à sua cartilha: lançou a suspeita de que haveria fraude nas urnas e, por isso, só reconheceria uma eventual derrota para Lula sob determinadas condições, que nunca foram explicadas detalhadamente por ele. O resultado da eleição e seu desdobramento são conhecidos. Após a vitória do petista, bolsonaristas bloquearam rodovias e acamparam em frente a quartéis do Exército, pedindo intervenção militar para sustentar o capitão no poder. Essa mobilização continua porque Bolsonaro mantém um silêncio conivente sobre as ações de seus apoiadores radicais e porque seus principais aliados alimentam a conflagração com declarações desastradas e ambíguas, num sinal de que, além de maus perdedores, não respeitam as regras do jogo e a vontade soberana do povo manifestada nas urnas.
O principal responsável pela confusão é o presidente em fim de mandato, que até agora não reconheceu de forma cabal a derrota para Lula, o que, se fosse feito, ajudaria a desanuviar o ambiente no país. Pessoas próximas a Bolsonaro justificam a postura do capitão de formas diferentes. Ele teria ficado deprimido com o fracasso da campanha à reeleição. Uma ferida na perna, que o impediria de se locomover, vestir calça e até de trabalhar, não permitiria que o mandatário fizesse os gestos esperados a favor da pacificação nacional. A alegada depressão é contestada por alguns aliados, mas a ferida existe e está sendo tratada. O fato é que Bolsonaro só voltou a dar expediente na quarta-feira, vinte horas depois de seu partido, o PL, pedir ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a anulação de votos depositados em quase 300 000 urnas — pedido que, se tivesse sido considerado pertinente, provocaria uma reviravolta na sucessão presidencial, com a declaração de vitória de Bolsonaro sobre Lula. Não à toa, durante o período entre a divulgação do resultado do segundo turno e a volta de Bolsonaro ao trabalho dezenove dias depois, a tese que prevaleceu entre os bolsonaristas radicais é a de que o capitão estava debruçado sobre um plano capaz de anular a posse de Lula e garantir a si próprio mais quatro anos de mandato. O sumiço e o silêncio seriam a senha de que algo estaria prestes a acontecer.
As declarações de assessores do capitão ajudaram a fortalecer esse entendimento e toda sorte de aspirações golpistas. Vice na chapa derrotada à reeleição, o general Braga Netto pediu calma a um grupo que reclamava de estar tomando chuva enquanto cobrava providências da Justiça Eleitoral. “Não percam a fé. É só o que eu posso falar para vocês agora”, afirmou o general. No México, o deputado Eduardo Bolsonaro evitou responder se houve fraude nas eleições brasileiras. “Não acreditem nas fontes da imprensa brasileira. Tem tudo aberto na internet. Procurem e tirem as suas próprias conclusões. Vocês vão ver que as coisas não aconteceram bem no Brasil”, disse o Zero Três. Já o senador Flávio Bolsonaro garantiu estar com o pai “para o que der e vier”. “Confiem no capitão!”, escreveu o Zero Um em uma rede social. Até um ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) fez coro à corrente golpista. Em áudio enviado a um grupo de WhatsApp, Augusto Nardes afirmou ter informações sobre um movimento muito forte nas casernas e projetou “dias nebulosos” e “desdobramentos muito fortes”. Com a revelação do caso, Nardes tentou desdizer o que disse, mas não conseguiu se livrar do mal-estar com colegas do TCU, que cogitam algum tipo de punição a ele.
Abaixo de Bolsonaro no comando da tropa, destaca-se o general Eduardo Villas Bôas, o mesmo que em 2018 pressionou o STF a prender Lula. Respeitado entre seus pares, Villas Bôas publicou uma nota exaltando os atos antidemocráticos na frente dos quartéis. A mulher dele até visitou um dos acampamentos dos manifestantes, que seguem bloqueando estradas e rodovias. Desde o fim da eleição, já foram desfeitas mais de 1 200 interdições, mas o problema está longe de ser resolvido. Algumas milícias bolsonaristas contam com um aparato comparado pela Polícia Rodoviária Federal ao de grupos terroristas e black blocs e estão usando bombas caseiras, pregos fincados em bananas e barricadas com incêndios. Os atos geram cenas lamentáveis, como a de um pai que, desesperado, clamava por conseguir passar por uma rodovia em Mato Grosso a fim de levar o filho de 9 anos para fazer uma cirurgia no olho, sob o risco de ficar cego se não passasse pelo procedimento. Com desdém e aos gritos, os manifestantes não liberaram a passagem.
Diante da escalada da violência nas estradas e das aglomerações nos quartéis, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, resolveu jogar mais combustível na crise. O partido pediu ao TSE a anulação de todos os votos aplicados nas 279 000 urnas fabricadas antes de 2020, alegando que foram constatadas “evidências de desconformidades irreparáveis de mau funcionamento”. Não foi apresentada uma prova que embasasse a denúncia. Além disso, especialistas descartaram o risco de fraude, tachando de primária — e falsa — a tese alegada. Uma tese furada tecnicamente, elaborada para manter as hostes bolsonaristas arregimentadas. O PL só pediu a anulação dos votos dessas urnas no segundo turno. Com isso, quis preservar sua vitória esmagadora no primeiro turno, quando fez as maiores bancadas da Câmara e do Senado. Com as anulações solicitadas, Bolsonaro seria declarado vencedor no duelo final com Lula. O TSE recusou o pedido, multou a coligação em 23 milhões de reais por litigância de má-fé e ainda determinou que o presidente do PL seja investigado.
Valdemar sabia dessa possibilidade, tanto que, longe dos holofotes, tentou fazer média com ministros dos tribunais superiores. Em conversas reservadas, o cacique do PL relatou estar sofrendo crescente pressão por parte de Bolsonaro para contestar o resultado eleitoral, já que o relatório apresentado pelo Ministério da Defesa jogou por terra qualquer possibilidade de questionamento. Ele também buscou ministros do STF antes de formalizar o pedido para relatar a investida do próprio Bolsonaro por trás da ação. Além disso, num sinal de que não via chance alguma de o pedido prosperar, Valdemar já articula o futuro de Bolsonaro fora da Presidência. Ao capitão foram oferecidos a função de presidente de honra do PL, uma equipe de assessores, um salário polpudo e ainda uma sala localizada porta com porta com a sede da legenda em Brasília. O espaço conta com dois andares e é capaz de abrigar mais de uma dezena de assessores. Há até um pequeno auditório. A ideia é que, ali, Bolsonaro receba informes, seja abastecido com dados setoriais e use o material para respaldar petardos na gestão de Lula e, assim, consolidar-se como o principal líder da direita e da oposição no país. Em outro sinal de que nem tudo é o que parece, o presidente já está escolhendo os nomes dos assessores que, por lei, poderão acompanhá-lo a partir de janeiro, quando deixar o Alvorada.
Outros próceres do Centrão dizem trabalhar para dar “equilíbrio” a Bolsonaro e prometem fidelidade a ele nos próximos quatro anos. Mas há condições. “Só não estarei junto se ele tentar dar um golpe de Estado, tentar uma coisa tresloucada, que não vai acontecer. Se cumprir um script de equilíbrio, eu estou muito empolgado de estar ao lado dele”, disse um importante aliado. De uma forma geral, nega-se no entorno do capitão a possibilidade de uma quartelada, até porque os próprios militares já estão negociando a transição. Há consenso de que Bolsonaro não passará a faixa para Lula. Os manifestantes não aceitariam essa concessão. Além disso, a transmissão de cargo referendaria o resultado da eleição e enterraria a tese da fraude nas urnas, que precisaria ser preservada como forma de manter a grei unida. Em Brasília, ninguém sabe a quem caberá entregar a faixa a Lula. Certo mesmo é que, ao sair do cargo, Bolsonaro deixará como legado o enfraquecimento de ritos democráticos, rachaduras em instituições e uma massa de apoiadores em estado permanente de conflagração.
Publicado em VEJA de 30 de novembro de 2022, edição nº 2817