Desde os anos de 1960, com a conquista da Casa Branca por John Kennedy, aos 43 anos, maciçamente apoiado pelas estrelas de Hollywood, políticos vêm colando sua imagem à de artistas de projeção que possam angariar votos. Não causa espanto, portanto, que eles estejam presentes agora, no polarizado cenário eleitoral brasileiro, como já estiveram nos entusiasmados palanques dos tempos da redemocratização. Mas há uma diferença fundamental no atual pleito: a onipresença das redes sociais, que amplificam a voz de celebridades com potência como nunca se viu. Elas reverberam ideias entre seus milhões de seguidores, com tuítes e retuítes, e furam, às vezes com um único post, uma bolha que parecia impermeável a determinados candidatos. É sob a lógica desse admirável mundo novo que as campanhas presidenciais — sobretudo as de Jair Bolsonaro e Lula — tentam atrair nomes conhecidos para suas hostes, como parte essencial de sua estratégia.
Nesse terreno, as placas tectônicas foram chacoalhadas com a entrada em cena do fenômeno Anitta, que declarou em 11 de julho o voto em Lula. A um séquito virtual de mais de 100 milhões de pessoas, e crescendo, ela esclareceu: “Não sou petista e nunca fui. Mas este ano estou com Lula”. A mensagem recebeu 350 000 curtidas e foi a mais compartilhada no Twitter ao longo de toda a semana. Ao PT, a frase soou como música. “Quando Anitta dialoga com um público que não vota na gente, ajuda a ampliar nosso eleitorado”, celebra o deputado federal Alexandre Padilha, um dos mais próximos a Lula. “O valor de famosos como ela é justamente trazer para o debate político uma turma que não está alinhada nem com o petismo nem com o bolsonarismo”, avalia Victor Piaia, pesquisador do Departamento de Análise de Políticas Públicas da FGV-RJ.
O apoio de Anitta não é obra do acaso, mas de uma costura que começou em abril, depois que a cantora se apresentou no festival Coachella, na Califórnia. Foi a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, mulher de Lula, que, diante do furor causado pela artista, teve a ideia de aproximá-la do marido. Buscou então amigos em comum, e não demorou para estarem duas vezes ao telefone. Lula entrou na linha. Ficou acertado que Anitta daria todo o apoio a ele (e não ao PT) nas redes, mas não faria aparições em palanques nem no horário eleitoral. No QG petista, o feito foi comemorado como um “golaço”, porque há a percepção de que o ex-presidente precisa melhorar sua visibilidade nas redes. Nelas, Bolsonaro sai na frente no Índice de Popularidade Digital, medido pelo instituto de pesquisas Quaest. Anitta é a vice-campeã, Lula o sétimo colocado (veja no quadro).
No universo virtual, sobressaem três grupos muito bem definidos: os que preferem Bolsonaro, os que estão a favor de Lula e aqueles pouco interessados em política. É essa terceira bolha que Anitta tem o poder de sacudir, segundo reforça um levantamento feito pela FGV a pedido de VEJA. “São em geral jovens críticos a Bolsonaro, mas não necessariamente petistas”, diz o especialista Victor Piaia. A adesão da cantora ao inimigo fez a campanha de Bolsonaro correr para atrair uma figura de peso no flanco da direita. Recentemente, um emissário do presidente procurou Roberto Carlos, que nas eleições de 2018 deu a entender que estava com o então deputado federal e, um ano mais tarde, posou com Sergio Moro quando ele já era ministro da Justiça na Corte bolsonarista. Não funcionou. O rei não apenas negou o pedido, como proibiu seus assessores de declararem o voto e ainda vetou as visitas ao camarim. Oficialmente, é uma medida de proteção contra a Covid-19, mas o receio do cantor, na realidade, é o de que convidados tirem fotos a seu lado fazendo sinal de arminha, muito usado por bolsonaristas, ou o “L” de Lula.
Sem o apoio do rei, a campanha de Bolsonaro aposta as fichas nos sertanejos, parcela dos artistas com maior identificação com os valores conservadores abraçados pelo presidente. Muitos deles já enalteceram Bolsonaro nos palcos, mas falta um passo decisivo: fazê-los se engajar para valer na campanha nas redes. Uma figura dessas fileiras capaz de suavizar o efeito Anitta é Gusttavo Lima, com seus cerca de 80 milhões de seguidores. Ele já posou usando um fuzil e, até pouco tempo atrás, emprestava a imagem a um frigorífico que lançou um corte de picanha batizado de “mito”. Agora, porém, Lima se mostra reticente a um endosso oficial. Está mais às sombras depois de se ver no meio de um escândalo de cachês milionários pagos por prefeituras de cidades do interior.
A articulação com os sertanejos tem sido tecida pelo empresário goiano do ramo do entretenimento Uugton (com dois “us” mesmo) Batista, que promove almoços e partidas de futebol com a presença do presidente. Nessas ocasiões, reúne expoentes dessa vertente musical, como Bruno & Marrone, Amado Batista e Gian & Giovani, e jogadores de futebol, como Ronaldinho Gaúcho, outro peso pesado das redes. “Nas rádios, os sertanejos dominam. Se entrarem com tudo na campanha, viram um trator e passam por cima de todo mundo”, confia Batista. No contra-ataque, o PT escalou João Paulo Rodrigues, líder do Movimento Sem Terra, para a dura missão de convencer os sertanejos a trocar de lado.
Como esperado, o uso da imagem de uma celebridade não raro se converte em abuso, com militantes recuperando falas do passado e as publicando fora de contexto, como se fossem atuais. Foi o que ocorreu com um vídeo de Felipe Neto, em que declara apoio a Bolsonaro, num possível embate com Lula. O detalhe: a fala é de 2017, bem antes de o youtuber se tornar crítico ferrenho do presidente. Nos últimos dias, foi a vez de deputados do PSOL cruzarem a linha, ao grudar suas fotos às de Anitta, em montagens nas quais parecem estar juntos — logo vetadas pela cantora. Nada, evidentemente, justifica o vale-tudo, tão fértil no universo das poderosas redes. “Nos dias de hoje, a declaração favorável de um astro a um candidato tem peso muito maior do que um pronunciamento de um político tradicional”, afirma o cientista de dados Fábio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo.
Enquanto os americanos, pioneiros no marketing político, já haviam consolidado a cultura de atrair aos palanques a classe artística, o Brasil entrou com força nesse jogo mais tarde, nas acirradas eleições de 1989 de retomada da democracia. A disputa trouxe pela primeira vez à arena política famosos em profusão, que se dividiam em um ringue mercurial: uma constelação global entoou o jingle Lula Lá, reeditado em 2002, ao passo que Claudia Raia e Marília Pêra foram de Collor. O racha entre famosos marcou aquele duelo. Eram tempos pré-históricos do ponto de vista da internet. “Nunca as celebridades tiveram tanta importância estratégica quanto agora, mudando radicalmente a forma de se fazer campanha”, observa o cientista político Felipe Nunes, CEO da Quaest. Preparem-se. É hora do show dos poderosos.
Publicado em VEJA de 27 de julho de 2022, edição nº 2799