Um dos maiores desafios para quem tenta projetar um cenário realista a respeito da próxima eleição presidencial envolve o destino de Sergio Moro. As pesquisas mostram que o ministro da Justiça é o único hoje que reúne condições reais de bater Jair Bolsonaro num eventual confronto direto. Ele, no entanto, já disse inúmeras vezes que não será candidato a cargo eletivo, sobretudo se isso significar ter de enfrentar nas urnas o atual chefe. Há quem duvide dessa convicção, especialmente os bolsonaristas mais radicais. Para esse grupo, o ex-juiz usa sua posição no governo para consolidar a própria imagem e pavimentar o caminho para uma futura campanha — com Bolsonaro, ao lado dele ou, se for o caso, até mesmo numa disputa com o presidente. Essa última hipótese é a que mais gera especulações, alimentadas, muitas vezes, pelo ministro mesmo. No mês passado, durante um jantar, Moro emitiu sinais de que algo mudou em seu cronograma. Em novembro, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo Tribunal Federal, completará 75 anos e será aposentado compulsoriamente. Até pouco tempo atrás, a indicação de Moro para a vaga era dada como certa — e ele não negava a intenção de assumir o cargo. Aliás, foi o aceno nessa direção que fez o ex-juiz da Lava-Jato aceitar o convite para integrar o governo. Ao que parece, porém, o STF não é mais prioridade.
No jantar, em um restaurante italiano, Moro confraternizava com apoiadores do presidente e falava de seus projetos à frente do ministério quando o assunto derivou para a possibilidade de ele assumir a vaga de Celso de Mello. Com as mesuras de quem vestiu uma toga por mais de duas décadas, o ex-juiz desconversou, mas sinalizou que voltar aos tribunais não é uma opção imediata. Segundo ele, não haveria tempo suficiente para concluir os projetos e as políticas de segurança pública que se propôs a implementar. A resposta foi interpretada de maneiras diferentes. Para os radicais, o ministro emitiu o sinal mais contundente até agora de que está completando seu processo de metamorfose e se preparando para mergulhar de vez na política. Os mais moderados enxergaram apenas um movimento tático. Em 2021, será aberta uma nova vaga no STF com a aposentadoria do ministro Marco Aurélio Mello. Moro continuaria no governo, ocupando um cargo que lhe dá enorme visibilidade e desobrigado de definir seu futuro agora — deixando em aberto todas as possibilidades, inclusive o retorno à magistratura.
Os últimos dias mostraram que o ministro da Justiça está cada vez mais à vontade sem a toga. Antes refratário a comprar brigas do governo, Moro trocou farpas em uma rede social com o ex-governador e ex-presidenciável Ciro Gomes e rejeitou provocações do governador de São Paulo, João Doria. Nos dois casos, o chefe da Justiça e da Segurança Pública agiu com método. Usando como pano de fundo o motim de policiais militares no Ceará, Ciro havia chamado Moro de “capanga” de Bolsonaro e Doria cobrara “mais firmeza” do ministro no controle da rebelião dos PMs. Em resposta, Moro declarou que, “apesar dos Gomes”, o impasse fora resolvido e os amotinados haviam voltado ao trabalho. Sobre Doria, disse que não discutiria “política partidária” com o tucano. Ciro e Doria são virtuais candidatos à Presidência da República. Se a atuação direta de Moro no conflito com os policiais deixou cicatrizes (graças a uma certa pusilanimidade ao lidar com o episódio), também contabilizou algum dividendo político. No fim, caiu na conta do ministro o mérito pelo encerramento do motim.
Nos últimos meses, institutos de pesquisa têm recebido demandas quase semanais sobre a popularidade do titular da Justiça. Uma das mais recentes partiu do empresário Luciano Hang, bolsonarista de carteirinha. Em vários quesitos, o subordinado se sai melhor que o chefe nesses levantamentos, provocando arrepios principalmente no Congresso, onde estão alguns alvos da Operação Lava-Jato. Em janeiro passado, VEJA revelou estar em gestação um plano para engessar as pretensões de juízes a cargos eletivos. A estratégia prevê convencer o presidente Bolsonaro a indicar o auxiliar para o STF e depois aprovar no Congresso uma quarentena de seis anos, afastando Moro de voos políticos pelo menos até 2028. Agora, outro movimento, ainda discreto, começa a ganhar corpo. Parlamentares defendem em caráter reservado a ideia de que seja levado ao plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) um recurso na ação que discute a abertura de um procedimento administrativo disciplinar contra Moro por ele ter tornado público, quando era juiz, um grampo telefônico que envolvia o ex-presidente Lula. A interpretação de alguns integrantes do CNJ é que seria possível enquadrar Moro na Lei da Ficha Limpa, que torna inelegíveis magistrados que tenham pedido exoneração na pendência de processo administrativo disciplinar. A ação seria aberta depois do pedido de exoneração de Moro, contudo diante de uma provocação feita antes. “A tese é juridicamente frágil, mas, no mínimo, serviria para criar confusão e constrangimentos para o candidato”, diz um ministro que acompanha o caso com grande interesse. Recentemente um conselheiro do CNJ cantou essa pedra para o senador Flávio Bolsonaro, o filho Zero Um. Era, segundo ele, o caminho para que o recado chegasse ao maior interessado na causa, o presidente Bolsonaro, que alimenta diuturnamente a suspeita de que Sergio Moro poderá, sim, ser seu principal concorrente em 2022. Haja intriga.
Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677