Tratadas como a mais urgente das reformas a ser executadas pelo presidente que assumirá em 1º de janeiro de 2019, as mudanças nas regras de aposentadoria estão sendo propositadamente escanteadas pelos candidatos em suas campanhas. Jair Bolsonaro, do PSL, e Fernando Haddad, do PT, falam de seus modelos de reforma da Previdência Social como planos em discussão, que não têm ainda uma forma definida — ou, se têm, está guardada a sete chaves. Nenhum dos dois quer arcar com a impopularidade inerente ao assunto. A continuar como é hoje, o sistema de previdência brasileiro estará fadado a quebrar. O país vem envelhecendo, e não há trabalhadores em quantidade suficiente para bancar o crescente número de aposentados. Não existe fórmula mágica, há que cortar de quem recebe. Ignorar o problema significa que, em poucos anos, as finanças públicas serão engolidas pelo orçamento previdenciário, e o Estado se tornará somente um administrador de folha de pagamento de pensões.
Em 2019, o somatório do déficit do Regime Próprio de Previdência Social (RPPS), sistema que custeia as aposentadorias do funcionalismo público, e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), que atende os trabalhadores do setor privado, atingirá 262 bilhões de reais (veja o quadro abaixo). Adicionando-se o déficit da previdência dos militares, o número sobe para mais de 300 bilhões de reais — o que seria mais que suficiente para custear toda a verba de saúde e educação.
As propostas mais concretas discutidas tanto por Bolsonaro quanto por Haddad podem ajudar a enfrentar o problema no futuro, mas não o urgente déficit que se impõe hoje. Bolsonaro fala em criar um sistema de capitalização, em que cada trabalhador contribui para o próprio fundo individual de aposentadoria. É um modelo similar aos planos de previdência complementar privados. A encrenca é que, no sistema atual, são os trabalhadores na ativa que custeiam os aposentados (o que é chamado de regime de repartição). Se os contribuintes deixarem de repente de bancar os aposentados para poupar no próprio fundo, o Tesouro terá de assumir a conta toda dos atuais aposentados. Segundo cálculos do economista Pedro Nery, consultor do Senado, a fatura seria de 420 bilhões de reais só no primeiro ano de mandato. O regime de capitalização é um modelo viável a ser discutido, desde que tenha uma fórmula que suavize os impactos da transição.
Já o candidato petista, naquela toada de não querer se comprometer, se disse aberto a discutir um modelo de capitalização para parte do sistema de aposentadorias, uma proposta apresentada por Ciro Gomes, do PDT, durante sua campanha no primeiro turno. Como o modelo não foi detalhado, é difícil estimar seu impacto. Mas é possível concluir que ele também exigiria um aporte do Tesouro, piorando o presente rombo nas contas da Previdência em um primeiro momento.
Oficialmente, a reforma da Previdência proposta no plano de governo de Bolsonaro limita-se a preconizar o fim dos privilégios. Se o candidato realmente se dispuser a acabar com benefícios que atendem poucos à custa de todos, o efeito será positivo — embora ele não diga como o fará nem de quem cortará. Ao longo de mais de 25 anos na Câmara, Bolsonaro fez o contrário do que diz agora. Discursou de forma inflamada contra importantes reduções de privilégios na aposentadoria de funcionários públicos. Foi contrário à reforma aprovada em 2003, que, entre outras coisas, acabou com a regra da integralidade e paridade — ao se aposentar, o servidor garantia uma aposentadoria equivalente a 100% do último salário, e com direito aos mesmos reajustes concedidos aos funcionários da ativa. Dez anos depois, quando houve unificação de regras e imposição do mesmo teto de benefício do INSS aos servidores, com a opção de contribuição a um fundo complementar, Bolsonaro manteve sua posição e foi contra.
As mudanças nas regras de aposentadoria de servidores aprovadas ao longo dos anos ajudaram, mas não foram suficientes. A despesa anual com os privilegiados é de 80 bilhões de reais, segundo cálculos do Senado, e só vai aumentar. Para atacar o problema, é preciso mexer no que os servidores insistem em chamar de “direito adquirido”. “O próprio Supremo Tribunal Federal já indicou que, na verdade, se trata de expectativa de direito. Direito adquirido é somente para os que já tinham atingido os critérios para a aposentadoria no momento da reforma”, analisa Nery, do Senado. Isso significa que a regra não muda para quem já estava aposentado, mas quem deu entrada no dia em que a nova regra entrou em vigor já deveria receber um valor menor. Bolsonaro nem sequer acena que mexerá nesse vespeiro. Mais improvável ainda é que ele mude a aposentadoria dos militares. O candidato menciona, com frequência, a figura do soldado com uma arma na mão e uma bengala na outra. Mas a realidade é muito diferente: mais da metade dos militares se aposenta com idade inferior a 49 anos.
Haddad também fala em atacar os privilégios, mas com a mesma falta de detalhes do oponente. Assim como Bolsonaro tende a não mexer na aposentadoria dos militares, é difícil imaginar um governo petista mexendo na aposentadoria de categorias de servidores de sua base eleitoral. A proposta do petista fala em redução do déficit por meio da recomposição de receitas, que viria com o crescimento do emprego formal. Só que a conta não fecha. Enquanto a receita cresceu 4% nos últimos anos, as despesas aumentaram 6,5%. Haddad discute também uma reforma no sistema de previdência do setor privado, mas diz que excluirá os trabalhadores de menor renda da regra da idade mínima. “Pessoas com rendimento menor são justamente as que já se aposentam mais tarde”, diz Nery. Trabalhadores de baixa renda têm dificuldade para atingir o tempo mínimo de contribuição, seja porque ficaram fora do mercado, seja porque atuaram na informalidade. Sendo assim, aposentam-se na idade mínima: 60 anos para mulheres, 65 para homens.
A raiz do déficit no INSS está nas aposentadorias precoces, dos trabalhadores que cumprem o tempo mínimo de contribuição e saem cedo da ativa. É um problema duplo: os que se aposentam antes param de contribuir para o sistema e recebem o benefício por mais tempo. Em geral, aqueles que se aposentam por tempo de contribuição são os que tiveram mais estabilidade e recebem proventos mais altos. Portanto, definir uma idade mínima para a aposentadoria é a melhor forma de resolver a questão. A reforma de Michel Temer lida com a questão, mas os dois candidatos já declararam que vão descartá-la. Longe dos holofotes, a equipe econômica de Bolsonaro, liderada por Paulo Guedes, diz que cogita tentar salvar o texto.
O fato é que, se o novo presidente não atacar o déficit na Previdência logo que assumir o poder, correrá o risco de ver seu governo imobilizado por falta de dinheiro. Qualquer que seja a solução para o problema, ela exigirá sacrifícios e rapidez. Em seu processo de decisão de voto, o eleitor tem o direito de escolher também qual sacrifício está disposto a fazer. Ao não discutirem de forma transparente as questões necessárias para a reforma, Bolsonaro e Haddad estão, na verdade, em busca de votos agora e de um cheque em branco no futuro.
Publicado em VEJA de 24 de outubro de 2018, edição nº 2605