Ao chegar ao Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro se cercou de uma grande tropa, colocando vários militares em cargos do primeiro e segundo escalão. Foi de longe o presidente que mais alocou auxiliares oriundos das Forças Armadas em posições de comando no governo desde a redemocratização do país. Além de Bolsonaro ter vindo desse meio, as nomeações de gente da caserna tiveram como objetivo trazer para a administração o prestígio de que a tropa goza entre boa parte da população. Mas o que parecia ser uma relação tranquila degringolou com menos de um ano de gestão — nada menos que onze generais e coronéis deixaram o posto por vontade própria ou foram demitidos, às vezes de forma traumática, pelo capitão da reserva (veja o quadro ao final da reportagem).
A deterioração da relação ganhou contornos de crise quando o Palácio do Planalto registrou uma baixa militar de peso na segunda-feira 4, com a saída do general da reserva Maynard Marques de Santa Rosa, que comandava a Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE). A demissão arrastou mais dois generais e um coronel do Exército subordinados a ele, que puseram o cargo à disposição do ministro Jorge Oliveira, da Secretaria-Geral da Presidência, à qual a SAE é subordinada. A debandada repete o enredo de outras baixas. Mesmo quando Bolsonaro substitui um militar por outro, como ocorreu em alguns casos, a forma como as coisas acontecem emite o sinal de que ele está desprestigiando a tropa. “O general Santa Rosa estava se sentindo subutilizado, pouco ouvido e até desrespeitado”, resume um membro do governo.
O caso de Santa Rosa é emblemático. Ao assumir como ministro, Jorge Oliveira — que ocupou o lugar de um general, Floriano Peixoto, que “caiu de lado”, ao ser deslocado para a presidência dos Correios — passou um mês sem fazer contato algum com o titular da SAE. Quando o secretário tomou a iniciativa e pediu para falar com o ministro, teve como resposta que a reunião seria agendada para dez dias depois. A gota d’água: Santa Rosa ficou sabendo que, dias antes, o ministro havia convocado seus subordinados para um encontro na mesma data, em outro horário, sem lhe comunicar. “Para um militar com 49 anos de ativa e oito de comando, esse é um erro indesculpável”, afirmou um dos assessores próximos a Santa Rosa. A reunião terminou com o pedido de demissão em massa.
Além do choque de realidade com o mundo da política de Brasília, os generais estão com a sensação cada vez maior de que o presidente não dá respaldo a eles nos embates com os demais grupos que disputam poder. Na avaliação de um general da reserva, apoiador do governo, Bolsonaro vem cometendo erros graves na relação com os militares. A primeira grande ferida aberta na caserna ocorreu com a demissão do também general Carlos Alberto dos Santos Cruz, amigo de Bolsonaro há mais de trinta anos. Santos Cruz passou seis meses como ministro da Secretaria de Governo, e sua saída se deu em junho, após um processo de fritura em alta temperatura promovida por aliados do presidente dentro e fora do Palácio do Planalto. O conflito pôs em trincheiras opostas as alas militar e ideológica do governo e foi parar nas redes sociais. No Twitter, Santos Cruz virou alvo dos palavrões do escritor Olavo de Carvalho, tido como uma espécie de guru da família presidencial, e de farpas de Carlos Bolsonaro, o filho Zero Dois. A crise que levou à demissão do general por Bolsonaro teve até uma conversa de WhatsApp forjada, na qual Santos Cruz aparecia criticando o presidente e concordando quando o interlocutor o chamou de “covarde” e “idiota”. Santos Cruz também havia se tornado desafeto do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que o considerava pouco afeito ao diálogo com parlamentares, e do secretário de Comunicação Social, Fábio Wajngarten, muito próximo ao Zero Dois.
O recente episódio que envolveu a saída de Santa Rosa reforçou a percepção de que, em uma queda de braço entre o núcleo militar e o grupo que se formou em torno do presidente durante seus 28 anos de política parlamentar, o segundo costuma sair vencedor. Jorge Oliveira, por exemplo, é major da reserva da Polícia Militar do Distrito Federal e homem de confiança de Bolsonaro. Seu pai, já falecido, foi chefe de gabinete do então deputado e hoje presidente por mais de vinte anos. Oliveira, por sua vez, foi chefe de gabinete e assessor jurídico de Eduardo Bolsonaro, o Zero Três. Santa Rosa não fazia parte do círculo íntimo do presidente, apesar de ter passado 49 anos no Exército, de onde saiu com quatro estrelas no ombro e vários cursos de formação, entre eles um pós-doutorado em política e estratégia pela Faculdade de Guerra do Exército dos Estados Unidos.
A demissão de militares, sobretudo a de Santos Cruz e a de Santa Rosa, gerou desconforto na caserna, até mesmo em oficiais da ativa. Ambos são muito respeitados pelos colegas de farda e vistos como extremamente qualificados. O ex-ministro é constantemente lembrado como o primeiro militar a comandar uma tropa da Organização das Nações Unidas (ONU) autorizada a empregar a força em uma missão de paz, na República Democrática do Congo, de 2013 a 2015. “Entre colegas, não conversei com ninguém que não tenha ficado incomodado, principalmente com a demissão de Santos Cruz e a maneira como foi retirado do governo. O presidente desprestigiou um amigo”, diz o general da reserva Paulo Chagas.
Além de ter ficado mal impressionada com os intestinos do governo, a maior parte do núcleo militar discorda das ideias radicais e dos modos pouco educados da ala ideológica que parece estar no comando do Palácio do Planalto. O mesmo vale para os militares de fora do poder. Durante uma reunião realizada em 24 de outubro, o Alto-Comando do Exército pautou como um dos temas a escalada de besteiras dos filhos do presidente. No final do encontro, a avaliação geral foi que a instituição deve se manter longe das trapalhadas. A reunião ocorreu uma semana antes da desastrosa fala de Eduardo Bolsonaro na qual ele afirmou que, em caso de radicalização da esquerda, o governo poderia responder com um novo AI-5, ato institucional baixado pelo presidente Costa e Silva em 1968 que aprofundou a repressão na ditadura militar. Entre a turma da caserna, a opinião quase unânime é que esse tipo de declaração só prejudica as Forças Armadas. “Além de o momento não ter nada a ver com 1968, a formação das três Forças é muito sólida em relação aos valores e ao respeito da democracia”, disse um general. O encontro foi seguido de uma visita ao general Eduardo Villas Boas, assessor especial do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e considerado um porta-voz informal do pensamento estratégico militar. Na visita, os generais da ativa sugeriram sutilmente a ele, que enfrenta graves problemas de saúde, a tática de manter distância do governo. Villas Boas, Augusto Heleno (GSI) e Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo) são os únicos generais que ainda são ouvidos pelo presidente Bolsonaro.
O momento é tão ruim que, mesmo quando acerta, Bolsonaro sai chamuscado. Ele passou a ser criticado entre as patentes inferiores em razão da reforma da Previdência da categoria e da reestruturação de carreiras das Forças Armadas. O presidente foi chamado de “traidor” por militares da reserva e pensionistas durante a votação da proposta pela comissão especial que analisa o texto, que prevê, entre outros pontos, o aumento do tempo mínimo de serviço para aposentadoria de trinta para 35 anos e a elevação progressiva da alíquota de contribuição. “Muitos já afirmaram que não votam mais no Bolsonaro nem em seus filhos”, diz Vanderley Carlos Gonçalves, vice-presidente da Associação dos Militares das Forças Armadas de São Paulo (Amfaesp). Por enquanto, a troca de chumbo não provocou rendição de nenhum dos lados. Mesmo generais mais críticos ao presidente dizem continuar confiando no governo. A mágoa é grande, mas não suficiente para que os soldados troquem de uniforme e se unam às tropas inimigas da oposição. Pelo menos até a próxima batalha.
Colaboraram Maria Clara Vieira e André Siqueira
Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660