Em setembro de 2020, o então candidato à Presidência dos Estados Unidos Joe Biden disse durante um debate que, se eleito, pensava em formar uma coalizão internacional para arrecadar 20 bilhões de dólares e destinar ao governo brasileiro para que a Amazônia fosse preservada. No dia seguinte, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi ao Twitter ironizar a proposta: “Só uma pergunta: a ajuda dos USD 20 bi do Biden, é por ano?”. Na época, o governo Bolsonaro não escondia a torcida pela reeleição do republicano Donald Trump, ao mesmo tempo que era alvo de pesadas críticas oriundas de várias partes do planeta por uma suposta negligência na preservação da Amazônia. Nos próximos dias 22 e 23, Salles, Biden e quarenta líderes mundiais, incluindo o presidente Bolsonaro, participam de uma reunião virtual convocada pelo americano para discutir ações práticas com o objetivo de mitigar os efeitos danosos das mudanças climáticas. A devastação da floresta certamente ocupará o centro dos debates no evento que será decisivo especialmente como teste para as habilidades diplomáticas do ministro, instado a convencer seus interlocutores de que ele não é o que parece.
Salles é considerado pelos ecologistas inimigo da floresta e parceiro de grileiros, madeireiros e garimpeiros, as pragas apontadas como principais responsáveis pelo aumento dos índices de devastação na Amazônia. Muito dessa fama se deve às confusões em que se envolveu nos últimos dois anos. O ministro já insinuou que o Greenpeace, ONG que é referência mundial em defesa do meio ambiente, teria sido responsável pelo gigantesco derramamento de óleo que atingiu o litoral brasileiro em agosto de 2019. Já acusou organismos internacionais de estarem na raiz de ataques contra o meio ambiente com o propósito de atingir a imagem do governo brasileiro. Entrou em choque com lideranças políticas da Alemanha e da Noruega por desentendimentos sobre a aplicação dos bilionários recursos do Fundo Amazônia, que acabaram suspensos. Para completar, na quarta-feira 14, a Polícia Federal encaminhou ao Supremo Tribunal Federal uma notícia-crime contra o ministro. Ele é acusado de dificultar investigações sobre exploração ilegal de madeira no Amazonas. Esses embates, aliados ao aumento do desmatamento e das queimadas, que têm registrado recordes nos últimos anos, fragilizaram a posição de Ricardo Salles no Brasil e, principalmente, no exterior. Não à toa, diferentes grupos — de políticos do Centrão a grandes exportadores brasileiros — pressionam o presidente a demiti-lo.
Ciente da fritura e ressabiado pela troca recente em sete ministérios, Salles resolveu fazer um movimento importante para se segurar no cargo. Ele está deixando de lado o radical de outrora e adotando cada vez mais o figurino de moderado e até de negociador, o que era uma exigência de parlamentares da base governista e de expoentes do agronegócio. Aliado de Bolsonaro, o presidente da Câmara, deputado Arthur Lira (PP-AL), chegou a cobrar o ministro em março, associando a sua atuação à dificuldade do governo brasileiro para obter vacinas contra a Covid-19. “Pandemia é vacinar, sim, acima de tudo. Mas para vacinar temos de ter boas relações diplomáticas, sobretudo com a China, nosso maior parceiro comercial e um dos maiores fabricantes de insumos e imunizantes do planeta. Para vacinar temos de ter uma percepção correta de nossos parceiros americanos, e nossos esforços na área do meio ambiente precisam ser reconhecidos, assim como nossa interlocução”, declarou o parlamentar. O recado foi compreendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Porta-voz de discursos contra a China, o chanceler Ernesto Araújo foi demitido dias depois. Salles conseguiu se segurar no cargo e agora negocia com o governo de Biden, aquele mesmo que ele ironizou numa rede social.
No momento, o ministro elabora uma proposta para ser apresentada aos Estados Unidos na reunião sobre o clima. Os detalhes ainda estão sendo fechados, mas ele quer 1 bilhão de dólares dos americanos para reduzir em 40% o desmatamento na Amazônia em doze meses. Em fevereiro, durante uma conversa preparatória, o ministro ouviu dos americanos que o dinheiro só seria pago após a apresentação de dados concretos sobre desmatamento. Salles insiste em receber o desembolso antes disso. A explicação pode estar nos números. O desmatamento na Amazônia aumentou 34% entre agosto de 2019 a julho de 2020 em comparação com o período anterior, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Mas a negociação com o governo americano agradou a Bolsonaro, que, com a derrota do republicano Donald Trump nas eleições, procurou o democrata Joe Biden para estender a mão ao diálogo. Às vésperas da reunião convocada por Biden, Bolsonaro enviou carta ao americano se comprometendo a acabar com o desmatamento ilegal até 2030 e incluir ONGs e indígenas nas discussões — demandas do governo americano nas reuniões com Salles. O presidente, aliás, gosta do trabalho do ministro. Seu filho Flávio Bolsonaro também. O ministro sabe disso e se sente prestigiado por quem tem a caneta na mão. “O pessoal viu que o presidente não tem interesse de mudar o meu ministério. Houve muita especulação, mas não há mais atrito”, disse Salles em entrevista a VEJA (leia o quadro).
No Congresso, a parte da bancada ruralista que é chamada pelos críticos de “atrasada” apoia o ministro, que faz o que pode para agradar aos parlamentares. Salles responde rapidamente a mensagens de celular, ouve demandas e discute com os congressistas pautas como a flexibilização de regras ambientais. “Ele é muito contestado porque é diametralmente oposto à forma como tratavam a questão ambiental antes. Não tem nada no ministro ou no ministério que deponha contra ele, é a pessoa mais preparada que já conheci”, diz o deputado Alceu Moreira (MDB-RS), ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. Já grandes exportadores, que temem boicote a seus produtos em razão do desmatamento da Amazônia, fazem lobby pela saída de Salles. “O grande risco hoje no Brasil infelizmente é o desmatamento e quem está representando isso é a figura do ministro”, diz Kátia Abreu, presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado (PP-TO) e ex-comandante da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil. Com a adesão às negociações, Salles quer demover os focos de resistência a seu nome. Nos últimos tempos, ele tem procurado embaixadores para convencê-los de que o Brasil tem um plano sólido contra o desmatamento da Amazônia. Inteligente e articulado, o ministro sabe que seu cargo também arde sob fogo.
Publicado em VEJA de 21 de abril de 2021, edição nº 2734