No Congresso, o deputado Hélio Leite (União Brasil) votou pelo impeachment de Dilma, pela reforma trabalhista, pelo teto de gastos e pela rejeição ao afastamento de Michel Temer. Neste ano, vai tentar a prefeitura de Castanhal (PA) com o apoio do PT. Em Belford Roxo (RJ), o lançamento do nome de Matheus do Waguinho (Republicanos) reuniu o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha, algoz do PT, mas também os petistas Lindbergh Farias e André Ceciliano, secretário de Assuntos Federativos do governo Lula. Em Parauapebas (PA), o empolgado pré-candidato a prefeito Rafael Ribeiro (União Brasil) destoava com a sua camiseta roxa em meio ao mar vermelho do PT no lançamento da candidatura de uma vereadora petista. Em Cabo de Santo Agostinho (PE), Keko do Armazém (PP), que se reuniu com Lula no dia 5, montou uma frente com PT, PCdoB e PSOL.
Os exemplos simbolizam o crescente pragmatismo das alianças municipais, cuja postura é dissociada, e muitas vezes o oposto, do comportamento das legendas em nível nacional. A Executiva Nacional do PT já bateu o martelo para pré-candidaturas em quase duas centenas de cidades com mais de 100 000 eleitores. Na maioria, pretende lançar candidatos próprios, numa tentativa de reverter a curva decrescente de prefeitos eleitos — 635 em 2012, 255 em 2016 e 182 em 2020, nenhum em capital. Mas o arco atual engloba, por ora, 49 nomes de outras legendas, sendo ao menos 24 deles de partidos sem identificação com a esquerda. Siglas como União Brasil e Republicanos, que comandam ministérios, mas no Congresso votam com frequência contra o governo, têm mais candidatos chancelados pelo PT do que parceiros históricos como PSOL e PCdoB (veja o quadro).
A postura é diferente da adotada em 2020, quando o PT priorizou candidaturas de esquerda e deixou claro o veto a siglas como DEM e PSL — por ironia, os partidos que formaram o neoaliado União Brasil. Para este ano, a única restrição a alianças, inscrita em documento aprovado pelo Diretório Nacional em 2023, é a nomes de extrema direita e/ou alinhados com o bolsonarismo — o PL nem foi citado, mas faz parte dessa lista negra.
O comportamento se explica pela mudança na conjuntura política. Em 2020, o PT era o principal adversário do governo. Neste ano, é a sigla de um presidente eleito por meio de uma diversificada aliança, com efetiva participação da centro-direita. Além disso, o PT quer ganhar terreno nos municípios, elegendo prefeitos ou compondo chapas, para consolidar alianças regionais que fortaleçam o palanque de Lula em 2026. “É melhor apoiar outros candidatos e ter um naco de poder em várias prefeituras do que ficar isolado sem nenhuma influência”, resume o cientista político Rodrigo Prando, docente do Mackenzie.
O PT concorda com a avaliação e defende a nova estratégia. “A conjuntura mudou”, admite o deputado federal Jilmar Tatto, secretário nacional do PT e integrante da Executiva Nacional. Segundo ele, como as alianças locais são fundamentais no processo de fortalecimento do PT nos municípios, a atuação das bancadas de outras legendas no Congresso tem pouca influência na definição das chapas e não deve inviabilizar as estratégias construídas no âmbito local. “A ideia é fortalecer o PT e estar no palanque do presidente Lula, em 2026”, afirma. A secretária nacional de Planejamento e Finanças do PT, Gleide Andrade, outra importante articuladora nacional da sigla, ressalta que todas as alianças referendadas pela Executiva Nacional foram definidas pelos diretórios locais. A exceção é o apoio a Luciano Ducci (PSB), em Curitiba, que foi decidido “de cima para baixo”, causando revolta do deputado Zeca Dirceu (PT-PR), que pretendia ser o candidato da legenda na capital paranaense. “A ideia é ter um palanque o mais amplo possível para derrotar o bolsonarismo”, defende Gleide.
A característica regionalista dos maiores partidos, cuja inclinação varia de estado para estado, bem como a postura ambígua em relação ao governo federal, permite situações locais bem diferentes dentro de um mesmo partido. Em Parauapebas (PA), polo de extração de minério de ferro, o presidente da Câmara, Rafael Ribeiro (União Brasil), lançou pré-candidatura com apoio do PT e bênção do ministro do Turismo, Celso Sabino, do mesmo partido que ele. Enquanto isso, em Aparecida de Goiânia, segunda cidade mais importante de Goiás, o prefeito Vilmar Mariano (União Brasil) repensa seu futuro político após ter seu plano de concorrer à reeleição, com apoio do PT, barrado pelo governador Ronaldo Caiado, seu correligionário, que tenta se viabilizar como candidato da legenda à Presidência em 2026 para enfrentar Lula. Embora poucos acreditem nisso, Caiado diz que a decisão de Goiás nada tem a ver com o PT, mas com o desempenho fraco de Mariano nas pesquisas eleitorais.
Outras legendas com relação ambígua com o PT e Lula no plano federal, como MDB e PSD, também estão entre os aliados mais comuns nas cidades médias e grandes. Lula, inclusive, se empenhou nos últimos dias para alavancar as pré-candidaturas do vice-governador da Bahia, Geraldo Júnior (MDB), que está 53 pontos atrás do prefeito Bruno Reis (União Brasil) em Salvador, segundo o Paraná Pesquisas, e do prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD), que é favorito à reeleição. A aproximação com nomes mais à direita, embora acertada pelas cúpulas dos partidos e referendada por Lula, causa desconforto. Em Francisco Morato, na Grande São Paulo, a aliança que garantiu a vice do PT à pré-candidatura do pastor Ildo Gusmão (Republicanos), eleitor de Bolsonaro, causou a debandada de militantes.
A maior flexibilidade do petismo tem a ver também com a pulverização do sistema partidário, que abriga ao menos sete legendas (União Brasil, PT, PSD, MDB, PP, Republicanos e PL) com capilaridade nacional, e com a necessidade do grupo de Lula de fazer frente ao crescimento do PL nos municípios (veja a reportagem na pág. 22). “O PT faz uma corrida de recuperação”, compara o cientista político Antonio Lavareda. Outro ponto fundamental é a necessidade de consolidar a aliança que sustenta Lula em Brasília.
A professora Isabel Veloso, da FGV, doutora em ciência política, observa que uma frente complexa como a feita por Lula frequentemente envolve a construção de alianças com partidos que, apesar de não serem ideologicamente alinhados, têm capacidade de mobilizar votos e apoio. “Não se deve ignorar a transição do PT de oposição para situação. Quando um partido assume o governo, precisa ampliar sua base de sustentação para garantir a aprovação de suas políticas e projetos no Congresso”, disse.
Para Veloso, isso frequentemente envolve a construção de alianças com partidos que, apesar de não serem ideologicamente alinhados, têm capacidade de mobilizar votos e apoio político. “Esse movimento do PT é uma prática comum em sistemas políticos que funcionam com base em coalizões, nos quais a necessidade de alianças supera as divergências ideológicas momentâneas em prol de objetivos maiores”, afirmou.
Um dos principais partidos da história recente do país, o PT ganhou cinco vezes a eleição presidencial. Teve gestões aprovadas, como nos primeiros mandatos de Lula, mas sofreu um impeachment com Dilma e não teve força para barrar a ascensão da direita bolsonarista em 2018. Volta agora ao poder em um cenário muito mais complexo, que exige de fato a abdicação de velhos dogmas da legenda. Resta saber se isso será suficiente para recuperar o terreno perdido nas cidades e dar a Lula um quarto mandato em 2026.
Publicado em VEJA de 5 de julho de 2024, edição nº 2900