Já pressionado pelas candidaturas de Jair Bolsonaro, colocada na rua praticamente desde o primeiro dia de mandato, e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ressuscitada pelo STF com a anulação de suas condenações, o centro político acelera as discussões sobre possíveis nomes na disputa de 2022. Inquilino do Palácio do Planalto entre 1995 e 2002 e presença constante no segundo turno presidencial de 2002 a 2014, até ser desbancado pelo bolsonarismo na última corrida presidencial, o PSDB se prepara para definir o nome que o representará no pleito e na mesa de negociações com outras legendas próximas ao seu campo. Importante pilar na construção da alternativa aos extremos, a escolha no ninho tucano deverá ser feita por meio de prévias, expediente corriqueiro em países como os Estados Unidos do bipartidarismo, mas incomum no Brasil da selva das siglas com caciques. Desde a redemocratização, apenas o PT, em 2002, definiu um candidato por meio de votação interna. Se naquela ocasião até o adversário interno de Lula, Eduardo Suplicy, sabia ser quase impossível bater o oponente, a disputa no PSDB tem o seu desfecho mais em aberto. Quatro nomes já são cogitados para o processo, inicialmente previsto para ocorrer em 17 de outubro: os governadores João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS), o senador Tasso Jereissati (CE) e o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio.
O governador paulista surge no momento como um dos favoritos e é o que mais tem dedicado energia ao assunto. Depois de tentar, mas não conseguir, a indicação ao posto de presidenciável em 2018, ele viu o seu poder aumentar no PSDB ao assumir o governo do estado mais rico e mais populoso da federação. Seu potencial eleitoral ganhou reforço em meio à pandemia do novo coronavírus graças à participação decisiva de sua gestão no acordo do Butantan para viabilizar a CoronaVac, o primeiro imunizante a ser utilizado no combate à Covid-19 e que responde hoje por 84% das doses aplicadas no país. O governador anunciou ainda, na última quarta-feira, 28, que o Butantan começou a produzir o primeiro lote de 18 milhões de unidades da ButanVac, vacina nacional pioneira contra o vírus.
Doria repete sempre que o investimento no imunizante teve como objetivo salvar vidas, e não servir de palanque para eleições, mas é inegável o valor político dessa conquista. Sondagem do Paraná Pesquisas feita para o PSDB mostra que, além de já ser um nome bastante conhecido nacionalmente (mais de 90% dos entrevistados dizem isso), o desempenho de Doria em um possível segundo turno contra Bolsonaro melhora à medida que as pessoas são informadas sobre o papel do governador para viabilizar a vacinação, a ponto de vencê-lo com uma apertada vantagem (veja o quadro). Numa comparação com o anabolizante econômico da vitoriosa campanha de Fernando Henrique Cardoso em 1994, a vacina é vista no Palácio dos Bandeirantes, a sede do governo paulista, como o Plano Real do governador. No ensaio de um discurso para uma possível campanha, dentro da percepção de que Lula e Bolsonaro vão gastar um bom tempo reeditando o embate entre direita e esquerda de 2018, Doria aposta no cansaço do eleitorado com essa polarização e vê a necessidade de recuperar a esperança no futuro (“as principais lideranças do país precisam substituir a gritaria pelo diálogo, o ódio pelo trabalho, o populismo pela realização”, escreveu em um artigo recente).
A estratégia faz sentido, mas há ainda um longo caminho a percorrer, com obstáculos consideráveis. Visto pelos adversários como um político muito individualista e excessivamente com a “cara” de São Paulo, Doria sabe que precisa urgentemente ampliar seu arco de alianças. E tem trabalhado nisso com afinco. Nas últimas três semanas, realizou cinco encontros que reuniram cerca de 170 prefeitos paulistas e conversou com lideranças das outras legendas de centro, além de costurar uma espécie de pacto de apoio mútuo com o colega gaúcho Eduardo Leite. Num jantar recente, ficou combinado que o resultado das prévias não poderia deixar cicatrizes: se Leite perder para Doria, apoiará o paulista, e vice-versa. Doria mantém ainda boa relação com a ala do MDB ligada ao deputado Baleia Rossi (SP), presidente da sigla, e com o ex-presidenciável João Amoêdo (Novo) e busca a filiação do ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ). Em outros partidos do centro, como DEM e PSD, aliados de seu governo, as conversas com vistas a 2022 são mais difíceis. Fora a ala que inclui o vice-governador paulista, Rodrigo Garcia — outro que pode desembarcar no PSDB —, o DEM está fracionado entre bolsonaristas e independentes liderados pelo presidente da sigla, ACM Neto. A aliados, o ex-prefeito de Salvador faz críticas às habilidades políticas do paulista e não esconde que tem no apresentador Luciano Huck e no ex-ministro Ciro Gomes (PDT) nomes ideais para seu palanque na disputa ao governo baiano.
Enquanto acelera conversas fora das hostes tucanas, no entanto, Doria não se descuida da trincheira interna, onde não são pequenas as dificuldades. Ele é visto com certa desconfiança por outras correntes do PSDB — em especial pela ala liderada pelo deputado Aécio Neves (MG). Entre os caciques da sigla, existe a avaliação de que a viabilidade eleitoral do governador depende da melhora considerável de seus índices nas pesquisas. Há ainda o peso político de seus adversários, como Eduardo Leite e Tasso, nomes que agradam aos quadros mais antigos do partido. O senador cearense, lançado no jogo pelo próprio presidente do PSDB, Bruno Araújo, vem sendo chamado (exageradamente) de “Biden brasileiro” por alguns tucanos que acham que ele poderia aglutinar a legenda a ponto de até as prévias serem abortadas. Contra Tasso, no entanto, pesam a baixa popularidade nacional, a proximidade com Ciro Gomes e as condições de saúde para enfrentar uma campanha (já recebeu três pontes de safena e seis stents).
Bem-sucedido até aqui na disputa de prévias, processo que o levou às candidaturas a prefeito e governador de São Paulo em 2016 e 2018, Doria defende fortemente a votação interna, na qual todos tenham direito a voto, com o mesmo peso (são 1,4 milhão de filiados, dos quais 22% estão em São Paulo). “Não tem prévia seletiva, com colégio eleitoral”, diz Doria. Eduardo Leite também prega o voto universal, mas com pesos diferentes, para evitar possível desequilíbrio. “Há situações distintas entre um estado governado há trinta anos pelo PSDB, como São Paulo, e outros, como o Rio Grande do Sul, que têm nível de mobilização diferente”, argumenta. Outra divergência é a data da escolha. O paulista quer uma definição ainda em 2021, enquanto Tasso e Virgílio defendem que ela ocorra apenas mais à frente. Uma comissão formada por sete tucanos vai formatar as prévias até o fim de maio.
Uma das variáveis envolvidas no processo tucano é saber como se dará a negociação com o chamado Polo Democrático, grupo de centro que assinou um manifesto pró-democracia no fim de março e que conta com seis presidenciáveis — entre eles Doria e Leite —, além do ex-juiz Sergio Moro. Doria já disse a interlocutores que avalia que Huck e Moro são cartas fora do baralho na disputa para 2022, enquanto a candidatura de Ciro Gomes (PDT) seria irreversível e desgarrada do grupo. Com a ótima chance de compor com Amoêdo, o PSDB precisaria se entender com o DEM, que por ora tem o nome do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta como pré-candidato ao Planalto. Com os blocos de três candidatos já na rua — Bolsonaro, Lula e Ciro —, o tempo corre contra os tucanos e o restante do centro. “Quanto mais demorada a definição do nome, naturalmente se acelera o processo de consolidação das alternativas já postas”, avalia o cientista político Antonio Lavareda. Na eleição que promete ser uma das mais aguerridas dos últimos anos, se a terceira via demorar a nascer, pode morrer no ninho.
Publicado em VEJA de 5 de maio de 2021, edição nº 2736