No início de 2016, era consenso que não tardaria muito para a força-tarefa da Lava-Jato dar o bote final contra o então ex-presidente Lula, principal investigado da operação e sobre o qual pairavam acusações de endossar e de se beneficiar do monumental esquema de corrupção que havia sido descoberto na Petrobras. Àquela altura, integrantes da alta cúpula da petroleira já haviam renunciado por causa do escândalo, próceres do PT estavam atrás das grades e políticos de alto coturno encabeçavam uma lista extensa de autoridades acusadas de receber propina. Um detalhe em comum sedimentava a convicção generalizada de que condenações duras contra todos eles eram apenas questão de tempo: os suspeitos, em sua grande maioria, tinham sido delatados por antigos parceiros. Em troca de benefícios, como a redução de pena, investigados decidiram colaborar com a Justiça, confessaram seus crimes, revelaram a identidade dos supostos comparsas e devolveram parte dos bilhões que haviam sido desviados dos cofres públicos. O esquema desmoronou.
Nessa época, Dilma Rousseff ainda era presidente da República. Ela própria acabaria depois envolvida no escândalo por uma delação. Preso, o marqueteiro João Santana, que cuidou da propaganda eleitoral da petista, contou que o dinheiro do esquema de corrupção havia financiado a campanha da mandatária. Antes disso, para tentar interromper esse ciclo, o então deputado Wadih Damous (PT-RJ) apresentou um projeto de lei que impedia que investigados presos pudessem negociar acordos de colaboração. O parlamentar alegou que estaria havendo uma subversão da ordem jurídica. A tese é que as prisões preventivas decretadas pelos investigadores da Lava-Jato estariam funcionando como instrumento de “tortura” para obter confissões, algumas nem sempre verdadeiras — algo, segundo ele, comparável ao que a ditadura militar fazia contra os opositores do regime. O projeto não avançou, o tempo mostrou que houve exageros em alguns acordos, mas também que, sem eles, a estrutura criminosa provavelmente nunca seria completamente desvendada.
Oito anos depois, no início deste mês, a Câmara dos Deputados aprovou um pedido para que tramite em regime de urgência um projeto que proíbe a Justiça de formalizar acordos de colaboração com investigados presos — idêntico ao de Wadih Damous. O autor é o deputado Luciano Amaral (PV-AL), da base do governo, que reproduziu os mesmos argumentos do petista para justificar a ressurreição da proposta. A diferença é que, desta vez, os polos se inverteram. Em 2016, Damous percebeu que as delações em cadeia apontavam na direção dos petistas. Agora, depois de reapresentada a proposta, deduz-se que os principais beneficiários seriam Jair Bolsonaro e antigos assessores. Enredado em inquéritos que apuram desde desvio de joias do patrimônio público até conspirações para um golpe de Estado, o ex-presidente foi delatado pelo tenente-coronel Mauro Cid, seu antigo ajudante de ordens. Cid estava preso preventivamente havia quase cinco meses quando decidiu colaborar com a Justiça e revelar, entre outras coisas, reuniões em que militares discutiram propostas para impedir a posse de Lula.
Para concordar em contar o que sabia, ele foi confrontado por seu próprio advogado com a perspectiva de ser condenado a até quarenta anos de prisão por crimes como peculato e lavagem de dinheiro. Entre encarar o cumprimento de uma pena altíssima e entregar o chefe, preferiu a segunda opção. “Há múltiplas motivações para políticos se assanharem com um projeto desses”, resumiu, sob reserva, um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Corte que muito provavelmente vai ser instada a analisar a legalidade da delação de presos, caso o projeto seja aprovado. “Isso é como uma infecção oportunista: une bolsonaristas, petistas, críticos de delações, alvos dessas mesmas delações e todos os que têm medo de serem delatados no futuro”, disse o magistrado.
Apoiadores do ex-presidente defendem que, caso aprovada, a lei poderia retroagir, invalidando a colaboração do ex-ajudante de ordens. Casada com uma proposta que já tramita no Congresso para anistiar os condenados pelos ataques do 8 de Janeiro, pode abrir caminho para o ex-presidente voltar ao jogo político. No cenário mais otimista, já em 2026. A simples hipótese de que isso possa ocorrer gerou um acalorado debate jurídico. “A delação premiada é uma norma processual porque tem um fim específico de produção de efeitos no âmbito do processo e por isso, em tese, a lei não poderia retroagir. O problema é que ela tem também um efeito material, porque envolve confissão de crimes. E, quando há efeitos materiais, é, sim, possível retroagir em benefício do réu ou investigado”, diz o professor de direito constitucional e doutor em direito do Estado Pedro Serrano.
A ressurreição do projeto aparece no instante em que avançam duas investigações com conexões políticas catapultadas por delação de presos — a de Mauro Cid e a do ex-policial militar Ronnie Lessa, que confessou o assassinato da vereadora Marielle Franco e apontou o deputado federal Chiquinho Brazão e o irmão dele, Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro, como mandantes do crime. Embora a lei que instituiu a colaboração premiada tenha sido pensada como método eficaz de investigação contra o crime organizado, a classe política foi o principal alvo. A maior de todas as delações, realizada por executivos do grupo J&F em um caso de corrupção, envolveu mais de 1 800 autoridades, entre parlamentares, governadores, ministros de Estado e presidentes da República. A Lava-Jato, por sua vez, fechou quase 400 acordos, quase todos enredando políticos. Muitos delatores estavam atrás das grades, o que sempre gerou críticas. “Claramente se trata de práticas de tortura usando o poder do Estado”, disse certa vez o ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal.
Juristas consultados por VEJA avaliam que limitar as delações é uma boa iniciativa, especialmente depois que ficou demonstrado que alguns colaboradores narraram fatos impossíveis de serem confirmados e até inventaram histórias com o objetivo de conseguir o acordo. Isso, porém, não significa que o instrumento deva ser eliminado como um dos elementos importantes para elucidar crimes. Indagado a respeito, Bolsonaro disse que não tem nenhum interesse em anular delações. O governo preferiu não se envolver na discussão, embora, indiretamente, tenha manifestado sua opinião sobre o tema. “Qualquer projeto de lei que alimente esse clima de intolerância, de beligerância, não deveria estar no centro das pautas neste momento”, declarou o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha. O deputado Luciano Amaral, autor do texto, afirmou que sua proposta “não possui nenhuma relação com ideologias políticas nem se vê destinada a atingir investigações ou processos específicos”.
Veloz como um raio, o pedido de urgência do projeto foi aprovado em votação simbólica. Isso acontece quando há acordo entre os partidos. Por ser “urgente”, a proposta não precisará ser analisada pelas comissões temáticas da Câmara e seguirá direto para o plenário, podendo entrar em pauta já nas próximas sessões. Alguns deputados do PT pediram para que ficasse registrado que eles eram contrários ao pedido de urgência. Puro teatro. Um importante líder partidário, que pediu anonimato, contou que, na verdade, ninguém está muito preocupado com o aprimoramento do instituto da delação premiada. O que move neste momento petistas, bolsonaristas e os demais apoiadores da ideia é algo bem mais objetivo. “Amanhã, o delatado pode ser qualquer um de nós”, resume ele. Em suma, o projeto é como muitos outros aprovados em Brasília: uma medida de autoproteção que beneficia suas excelências.
Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897