Entre 2003 e 2018, funcionários do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro se dirigiam todos os meses ao banco e sacavam o salário na boca do caixa. Parte do dinheiro era entregue a um assessor de confiança do parlamentar, que usava os recursos para pagar, entre outras coisas, as despesas pessoais do filho mais velho do presidente. Segundo o Ministério Público do Rio de Janeiro, essa sequência de eventos caracteriza crime de peculato — ou rachadinha, como a prática é popularmente conhecida —, que prevê penas de até doze anos de prisão. Também segundo o Ministério Público, Flávio não era o único. A fraude foi praticada na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro por pelo menos outros 21 parlamentares ligados aos mais variados partidos, do PT ao PSOL. Calcula-se que foram desviados nesse período dezenas de milhões de reais dos cofres públicos.
O mais perturbador de tudo é que, apesar dessa fartura de provas, nada, rigorosamente nada, deve acontecer com os envolvidos. Na terça 30, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal considerou que o Ministério Público cometeu uma série de irregularidades ao longo da investigação da rachadinha. Por 3 votos a 1, os ministros concluíram que os promotores investigaram clandestinamente o hoje senador Flávio Bolsonaro, acessaram informações protegidas por sigilo sem autorização judicial e ignoraram propositadamente o fato de o filho do presidente, por ocupar o cargo de deputado estadual na época das suspeitas, ter direito a foro privilegiado. Pela regra, ele não poderia ter sido alvo de quebras de sigilo e de mandados de busca determinados por um juiz de primeiro grau, como ocorreu, e sim processado diante de um colégio de desembargadores na segunda instância. O veredicto praticamente encerra de vez o caso.
Foi um alívio não só para o senador. O caso das rachadinhas da Alerj é considerado um marco no governo Bolsonaro. Eleito com um discurso de combate à corrupção, o presidente viu sua pregação perder força e credibilidade diante do avanço das investigações que não deixaram dúvidas sobre o esquema de recolhimento de salários que funcionou no gabinete do filho Zero Um. Em um livro lançado recentemente, o ex-ministro da Justiça Sergio Moro revelou, por exemplo, que Bolsonaro usou o governo para blindar Flávio, ao fazer pressões políticas e não se empenhar na aprovação de projetos importantes de enfrentamento à criminalidade. “Um estadista tem o compromisso de dirigir o país pensando no bem-estar geral e não em proteger o filho ou a família da ação da lei”, escreveu o ex-juiz, agora pré-candidato ao Planalto. Se o presidente realmente se pautou por esse objetivo, a operação foi bem-sucedida.
Antes da decisão do STF, Flávio já vinha amealhando vitórias no Superior Tribunal de Justiça, que havia derrubado peças robustas da investigação, como mensagens de celulares que indicavam o recolhimento de valores, comprovantes de transferências bancárias entre os envolvidos e conversas que apontavam para a participação do advogado da família Bolsonaro, Frederick Wassef, em uma ação para manter escondido o ex-policial Fabrício Queiroz, o assessor do senador acusado de recolher o salário dos funcionários. “Após quase três anos de investigação ilegal e que, mesmo ante as inúmeras arbitrariedades, vazamentos e covardias, nada foi encontrado contra mim, justiça finalmente foi feita. A perseguição promovida por alguns poucos membros do honrado Ministério Público do Rio de Janeiro, para tentar atingir o presidente Bolsonaro, chega ao fim”, escreveu o senador em uma rede social.
O desfecho do caso produziu mais uma daquelas incríveis ironias do destino. Em abril, o STF anulou os processos contra o ex-presidente Lula, que havia sido preso e condenado por corrupção. Apesar das provas, dos testemunhos e dos documentos que revelaram a participação do petista no esquema de corrupção da Petrobras, os ministros decidiram que os processos não deveriam ter sido julgados pela 13ª Vara de Curitiba, então comandada por Sergio Moro, e sim pela Justiça do Distrito Federal. Nem Flávio nem o ex-presidente foram inocentados pela Justiça, como gostam de difundir seus apoiadores. Ambos se beneficiaram de erros processuais. Para o debate eleitoral, o curioso é que Bolsonaro e Lula, adversários, agora dispõem de armas semelhantes — tanto de ataque como de defesa.
Publicado em VEJA de 8 de dezembro de 2021, edição nº 2767