Jair Bolsonaro torcia para um desfecho bem específico no julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a reeleição para as presidências da Câmara e do Senado. Ele queria que o senador Davi Alcolumbre, de quem é aliado, fosse autorizado a disputar um novo mandato, mas não o deputado Rodrigo Maia, considerado por ele seu principal opositor no Congresso. Por uma dessas coincidências típicas de Brasília, o ministro Nunes Marques, indicado ao STF pelo presidente da República, votou exatamente nesse sentido. O problema é que foi o único voto — entre onze ministros — a defender essa tese. Por maioria, a Corte vetou a possibilidade de reeleição dentro da mesma legislatura. Assim, as corridas pelo comando das duas Casas perderam seus favoritos e foram reiniciadas do zero. As votações para os cargos só ocorrerão em fevereiro, mas as articulações já estão em curso. Tanto na Câmara quanto no Senado, a disputa se dá entre Bolsonaro e os políticos que, desde já, tentam impedir a sua reeleição. Desenrola-se agora no Legislativo uma espécie de preliminar da campanha que escolherá, em 2022, o novo chefe do Executivo.
Desde antes da sentença do Supremo, que rechaçou um conchavo de bastidores destinado a burlar a Constituição, Bolsonaro trabalhava para impedir a recondução de Maia ou a vitória de um candidato apadrinhado por ele. Derrotá-lo se tornou um projeto de governo. O contrassenso é que o deputado, à frente da Câmara, contribuiu de forma decisiva para a aprovação de temas fundamentais, como a reforma da Previdência, o auxílio emergencial e a suspensão temporária de amarras orçamentárias, com o objetivo de permitir mais gastos públicos em resposta à pandemia de Covid-19. O presidente tem restrições a Maia porque o parlamentar, com o apoio de diferentes partidos, dificultou o avanço de temas caros à base ideológica do bolsonarismo. “O governo está desesperado para desorganizar de vez a agenda do meio ambiente no país. O governo está de uma vez por todas interessado em flexibilizar a venda e a entrega de armas neste país, entre outras agendas que desrespeitam a sociedade brasileira e as minorias”, declarou Maia na semana passada. Mas a principal razão para a animosidade é 2022. Bolsonaro considera o deputado artífice da construção de uma candidatura de centro na próxima sucessão presidencial, o que é verdade.
Maia trabalha com várias possibilidades, de uma aliança com o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), ao lançamento de uma candidatura de DEM e MDB, de preferência com o apresentador Luciano Huck na cabeça da chapa. Um sucessor escolhido por ele poderia usar o poderoso cargo de presidente da Câmara para ajudar nessa costura, o que Bolsonaro quer evitar a qualquer custo. O presidente faz campanha aberta pela candidatura do deputado Arthur Lira, líder do PP e do Centrão, grupo de legendas conhecidas por mercadejar apoio ao mandatário da vez. Para dar competitividade a Lira, o governo está prometendo as moedas de sempre — recursos orçamentários e cargos. As ofertas são apresentadas não só aos integrantes da base aliada, mas a congressistas de siglas consideradas independentes ou que estão sob a influência de Rodrigo Maia. Há ofertas também para outros pré-candidatos ao comando da Câmara. Na semana passada, o senador Ciro Nogueira, presidente do PP, propôs ao deputado Baleia Rossi, comandante do MDB e postulante à sucessão de Maia, que apoiasse Lira. Em troca, o PP apoiaria o candidato do MDB na eleição no Senado. Governistas também fizeram chegar ao ex-presidente Michel Temer uma sondagem sobre a possibilidade de ele assumir o posto de chanceler (veja o quadro na pág. 34).
O objetivo é claro: afastar o MDB da costura de centro e incentivá-lo a analisar a possibilidade de aderir, como agremiação, a Bolsonaro. Até agora, nada feito. O Republicanos, dirigido pelo deputado Marcos Pereira, que também sonha em presidir a Câmara, foi outro alvo do assédio palaciano. A sigla recebeu o aviso de que uma indicação partidária para a Conab já está aprovada e só depende da formalização. Até o fechamento desta edição, Baleia Rossi e Marcos Pereira continuavam no páreo. O emedebista contava com eventual apoio de Rodrigo Maia, que também considerava apadrinhar Aguinaldo Ribeiro, do PP. A ofensiva do governo para conquistar o comando da Câmara com Arthur Lira é tão pesada que provocou até uma turbulência interna. Conforme revelado pela coluna Radar, Marcelo Álvaro Antônio, titular do Turismo, mandou uma mensagem no grupo de WhatsApp dos ministros desancando o general Luiz Eduardo Ramos, responsável pela articulação política. Ele chamou o colega de “traíra” por ter pedido a sua cabeça ao presidente como forma de entregar a pasta ao Centrão. Após a revelação do caso, Bolsonaro demitiu Álvaro Antônio. Sua mensagem, no entanto, resume bem o empenho governamental no caso.
Escreveu o ministro demitido do Turismo: “Ministro Ramos, o sr. entra na sala do PR comemorando algumas aprovações insignificantes no Congresso, mas não diz o altíssimo preço que tem custado. Conheço de Parlamento, o nosso governo paga um preço de aprovações de matérias nunca visto antes na história, e ainda assim (na minha avaliação) não temos uma base sólida no Congresso Nacional (tanto que o sr. pede minha cabeça pra tentar resolver as eleições do parlamento, ironia, pede minha cabeça pra suprir sua própria deficiência)”. Confusões à parte, o fato é que as eleições no Parlamento são estratégicas e terão influência decisiva nos rumos do país, de Bolsonaro e da oposição até 2022. Cabe ao comandante da Câmara, por exemplo, dar andamento ou não aos pedidos de impeachment contra o presidente da República e definir a pauta de votações de projetos importantes e fundamentais, como os das privatizações, e emendas constitucionais destinadas a conter a sangria da dívida pública. O governo, finalmente, tem plena consciência do que está em jogo.
Uma semana antes do segundo turno das eleições municipais, sete ministros se reuniram no Planalto para avaliar como ficaria a governabilidade diante das eleições para a Câmara e o Senado. A conversa, que demorou duas horas, começou com um debate sobre quais partidos poderiam ser atraídos pelo governo na disputa pelo comando das duas Casas. Ali ficou claro que o presidente deveria, além de reforçar laços com o Centrão, flertar com legendas que se dizem independentes. Um dos participantes do encontro contou a VEJA que houve consenso sobre a necessidade de Bolsonaro abandonar o discurso radical e reforçar o figurino de moderado, o que facilitaria eventuais negociações. Houve consenso também sobre o perfil dos futuros chefes de Câmara e Senado. Eles deveriam ser comprometidos com a aprovação das reformas, as privatizações e a agenda liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes. Deveriam, portanto, empenhar-se na recuperação da economia brasileira, que, se ocorrer, pode dar fôlego à reeleição de Bolsonaro. Se na Câmara Lira é a aposta do governo, no Senado o cenário está mais indefinido. O presidente manifestou simpatia pelas eventuais candidaturas dos senadores Eduardo Gomes, líder do governo no Congresso, e de Fernando Bezerra, líder do governo na Casa. Ambos são do MDB. Como no caso da corte a Temer, o aceno ao partido visa a afastá-lo das costuras com PSDB e DEM para a sucessão presidencial em 2022.
Como Davi Alcolumbre resiste a passar o bastão a um emedebista, o governo também cogita apoiar um nome do PSD, partido ao qual é filiado o ministro das Comunicações, Fábio Faria. O PSD é sempre governo. E é justamente aí que surge uma dificuldade. Se tem uma perna no governo federal, tem outra no governo de São Paulo, já que seu mandachuva, Gilberto Kassab, é secretário licenciado do governador João Doria. Na última eleição na Câmara, partidos de oposição se aliaram a um nome de centro para derrotar Bolsonaro. A estratégia deu certo e resultou na vitória de Rodrigo Maia. Como o PP apoiou os governos de Lula e de Dilma Rousseff, Arthur Lira procurou os oposicionistas, que ainda não têm candidato na disputa. Réu no Supremo em decorrência da Lava-Jato, o deputado tem prometido aos colegas combater os excessos da operação, uma cantilena que seduz principalmente os petistas. As promessas não só não foram rechaçadas como estão sendo avaliadas.
“Adoraria que tivesse alguém que não fosse da base do governo com chance de vencer. Não tem e, provavelmente, não terá. Queremos discutir e ver quem conduz melhor a Câmara. Não há veto a ninguém”, afirma Carlos Siqueira, presidente do PSB, cuja bancada já deu sinais de que apoia Lira. “Essa disputa não envolve a questão ideológica, mas o espaço que o partido vai ter na Casa e a sua importância. Nós somos o maior partido. Queremos discutir proporcionalidade, queremos discutir uma pauta mínima de respeito à democracia, à transparência e de respeito aos poderes. Também temos uma pauta do partido que é contra a privatização da Petrobras e da Eletrobras. Vamos montar uma pauta e ouvir os candidatos”, diz o líder do PT na Câmara, Enio Verri. Com a oposição em frangalhos e o Centrão em festa com a promessa de uma nova rodada de verbas e cargos, Bolsonaro tem condições favoráveis para vencer as eleições do Congresso. Se isso ocorrer, terá uma nova chance de fazer avançar uma agenda econômica de interesse do país, mas, ao mesmo tempo, perderá a eterna muleta de culpar um adversário pelo fato de projetos prioritários não saírem do papel.
Com reportagem de Hugo Marques
Publicado em VEJA de 16 de dezembro de 2020, edição nº 2717