A meta do PL para o pleito municipal que se avizinha não é modesta — o partido mira um patamar de 1 500 prefeituras, cerca de um quarto das cadeiras em jogo, depositando as fichas em Jair Bolsonaro como cabo eleitoral. Só que a estratégia vem esbarrando em dois empecilhos: o ex-presidente não tem até agora conseguido transferir seu capital político em disputas centrais, como Rio de Janeiro e São Paulo, e ainda por cima escolhe a dedo os páreos nos quais quer mesmo se envolver. E é aí que surpreende o tanto de atenção e esmero que dedica agora a Angra dos Reis, a cidade de 168 000 habitantes encravada na exuberante Costa Verde fluminense, onde ele tem casa de veraneio em meio a um pontilhado de propriedades de empresários e celebridades.
O foco nesse privilegiado naco do litoral, banhado por mar cristalino, é embalado por um projeto em que Bolsonaro martela desde os tempos em que ocupava o Palácio do Planalto e não lhe deixa a cabeça. Ele sonha fazer de Angra uma versão brasileira da mexicana Cancún, povoando a paisagem com hotéis de bandeira internacional e lotando a costa de cruzeiros, para arrepio de quem quer manter o verdejante cenário preservado.
É eleição de altas bolas divididas, o que não parece esmorecer o ímpeto do clã bolsonarista de atuar naquelas praias. Os trabalhos começaram por lá com o rompimento com um aliado de longa data, o prefeito Fernando Jordão, do mesmo PL, que, não podendo mais concorrer à reeleição, indicou à vaga o amigo e ex-secretário de Obras Cláudio Ferreti, do MDB. A decisão enfureceu Bolsonaro, que garante que o combinado era ser consultado. E não deu outra: o ex-presidente logo abandonou o barco do alcaide, alçando o empresário Renato Araújo a postulante pelo PL e rachando a legenda. “Levei até um susto”, conta Araújo. Neófito na política, ele soube ter sido ungido a candidato em dezembro passado, quando acompanhava a posse do presidente Javier Milei em Buenos Aires, levado pelo senador Flávio Bolsonaro, o integrante da família de quem é mais próximo.
A cisão na Costa Verde desencadeou uma série de movimentações, com caciques do MDB tentando costurar uma via alternativa junto a Bolsonaro, que não quis papo e, não satisfeito, converteu Angra em uma passarela bolsonarista: já apareceram por ali pedindo votos para Araújo o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), o pastor Silas Malafaia e até Padre Kelmon, enquanto o deputado federal Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) foi o escalado pelo próprio Bolsonaro para coordenar a campanha.
Nestes últimos dias, a contenda só fez subir de tom, com os trechos menos nobres da biografia de cada qual vindo à luz. Ferreti, o candidato do prefeito Jordão, é atacado por ter sido alvo de uma investigação por fraudes em licitações e por um processo de impugnação de sua candidatura recém-protocolado pelo Ministério Público Estadual — as contas da época em que comandava as obras no município foram rejeitadas, segundo o MP, por fatos que configuram improbidade administrativa. A Polícia Federal apura ainda se a gestão atual estaria cooptando ex-funcionários de Araújo para denunciá-lo por supostas irregularidades trabalhistas. Do outro lado do ringue, o preferido do clã Bolsonaro está à frente da polêmica construção de um condomínio que planeja abrigar mansões à beira-mar. As obras foram embargadas há dois anos sob a justificativa de mudanças no projeto que oferecem “risco de deslizamento e inundação”. Em meio ao tiroteio de cá e de lá, Araújo é também cutucado por uma bolada de quase 500 000 reais que deve à prefeitura, por falhas na prestação de contas de um campeonato de jet ski. “Eles querem eleger uma pessoa despreparada e sem crédito na praça”, dispara o prefeito Jordão. “Escolheram um cara que ficou 39 dias foragido”, rebate Sóstenes, referindo-se a Ferreti. Procurados por VEJA, os candidatos negaram as acusações.
Um raro ponto que hoje une os dois polos do enroscado embate é o desejo de flexibilizar a legislação ambiental que protege as belezas naturais de Angra dos Reis. Cerca de 80% do município é coberto por Mata Atlântica, intocada graças também à Área de Proteção Ambiental de Tamoios e à Estação Ecológica de Tamoios, que juntas alcançam 214 quilômetros quadrados e abarcam setenta ilhas (na proximidade de uma delas, aliás, Bolsonaro foi autuado por pescar em área proibida). Para o ex-presidente, as restrições na região, patrimônio natural da Unesco, são um inaceitável freio de mão ao afluxo de turistas na cidade, na casa de 1,3 milhão por ano — dezesseis vezes menos que Cancún. Araújo segue na batalha pela prefeitura imbuído, como o chefe, da ideia de converter Angra num destino à la riviera mexicana, no que depende da esfera federal. “Em 2026, teremos um Parlamento que resolverá esse decreto (da estação ecológica) e poderemos investir no setor turístico”, defendeu Bolsonaro ao lado do apadrinhado. Por ora, o que está de mais concreto à mesa é uma sacudida na lei local de zoneamento para permitir que subam por lá prédios maiores, ao estilo de Balneário Camboriú, como quer a dupla, alheia às necessidades ambientais.
O palanque bolsonarista segue nessa mesma toada ao elencar entre suas promessas, esta mais ao alcance da administração municipal, uma ampla reforma do pequeno porto no centro de Angra. O plano é que dê conta de receber navios de grande porte. Os pescadores seriam então removidos, e a Rua do Comércio, fechada para pedestres. Todo esse discurso é repudiado por ambientalistas, que argumentam que o desaparecimento do cinturão verde em torno da cidade lhe subtrairia seu maior atrativo. “Esse é um modelo arcaico de turismo, que não enxerga nas unidades de preservação seu imenso potencial”, avalia o ambientalista Ivan Marcelo Neves. O páreo promete ser duro. A última pesquisa de opinião, conduzida em maio pelo instituto Paraná Pesquisas, indicava uma vantagem de 15 pontos percentuais para a turma do atual prefeito — o que torna a maré eleitoral ainda mais revolta em Angra. Quem conhece bem Bolsonaro garante: ele vai até onde conseguir para fazer daquela costa sua própria praia.
Publicado em VEJA de 6 de setembro de 2024, edição nº 2909