O Partido Social Liberal (PSL) tem uma das histórias mais inusitadas da política brasileira recente. Passou 23 de seus 25 anos de existência praticamente anônimo. Antes de 2018, nunca havia eleito um governador, contava com apenas trinta prefeitos e um único deputado federal e não tinha nenhum senador. Os tempos de irrelevância mudaram quando um inexpressivo deputado federal ingressou na legenda quase de última hora para concorrer à Presidência da República — e vencer a disputa, mesmo contra todos os prognósticos. O surpreendente furacão Jair Bolsonaro levou a sigla a eleger três governadores e quatro senadores e a conquistar 52 cadeiras na Câmara — o que lhe valeu a segunda maior bancada, atrás apenas da do PT (com 54). O capitão permaneceu no barco somente um ano e oito meses e saiu de forma nada amistosa em direção a uma nova legenda, o Aliança pelo Brasil, que está em criação (atrás do presidente, deve ir boa parte dos principais pesselistas, muitos deles cotados para a disputa municipal deste ano, caso o partido se viabilize).
A breve passagem de Bolsonaro pela sigla, no entanto, foi uma espécie de bilhete premiado. O resultado das últimas eleições vai levar aos cofres do PSL, apenas neste ano, uma bolada de 311 milhões de reais, oriundos de fundos com dinheiro público para financiar gastos de campanha e despesas partidárias. Nunca antes em sua história o PSL teve tanto dinheiro. Em 2018, por exemplo, recebeu 17,5 milhões de reais para as campanhas de presidente, governadores, deputados e senadores. Em dois anos, a legenda passou de nanica a milionária, a mais rica entre as 33 do país, à frente até mesmo do PT.
O cofre cheio, aliás, foi o pano de fundo do racha entre o partido e os bolsonaristas. Como ocorre com muitos que ganham fortunas do dia para a noite, o PSL não tinha nem de longe estrutura e preparo para lidar com tanto dinheiro. Com a debandada bolsonarista, ficou também sem candidatos. “Estamos em uma corrida contra o tempo para organizar o partido para as eleições”, afirma o deputado federal Coronel Tadeu (SP). Até dezembro, a legenda não estava formalizada em doze das 26 capitais — hoje, ninguém sabe o número certo. Pode parecer uma questão burocrática, mas sem diretório municipal não é possível lançar candidatos, o que atrapalha a meta de eleger 550 prefeitos e estar presente em pelo menos 4 000 das 5 570 cidades do país.
O rompimento com a família Bolsonaro afetou, por exemplo, os dois principais estados, que eram comandados pelos filhos do presidente: Eduardo, em São Paulo, e Flávio, no Rio de Janeiro. O filho Zero Três é acusado de ter deixado um cenário de terra arrasada no PSL paulista. “Ele destituiu dezenas e mais dezenas de dirigentes, pessoas que haviam feito carreata, trabalhado duro para eleger o presidente”, critica o deputado federal Júnior Bozzella, o atual presidente da sigla em São Paulo. Outra força-tarefa em curso no partido é a seleção de interessados em se candidatar a vereador e a prefeito.
Na terça-feira 4, a cúpula se reuniu com as lideranças estaduais para apresentar o sistema que o partido usará para fazer a triagem dos pré-candidatos. A ideia é conectar os diretórios municipais e estaduais a um grande banco de dados, que será capaz de verificar se os interessados em se candidatar são ficha-limpa ou não. O prazo de formação das chapas se encerra em agosto, mas todos os candidatos precisam estar filiados até abril. Não é exagero dizer que o PSL é um avião que está sendo construído em pleno voo. Encontrar interessados em se candidatar não é problema. Há pré-candidatos peregrinando nas Assembleias Legislativas e nos gabinetes de Brasília em busca de apoio. O problema é encontrar nomes de peso, já que a legenda perdeu seus principais puxadores de votos. Ex-aliada de Bolsonaro, a deputada federal Joice Hasselmann tornou-se a grande aposta do partido para fazer o prefeito de uma capital (justamente a maior do Brasil, São Paulo) e deve levar a maior bolada de recursos do PSL em sua campanha. Outro nome certo é Fernando Francischini, deputado estadual que concorrerá à prefeitura de Curitiba. No Rio, a principal alternativa é o deputado estadual Rodrigo Amorim.
A correria não é à toa. No caso do PSL, o fundo eleitoral (que é distribuído apenas em anos de votação e responde por dois terços da verba total de 2020) e o fundo partidário (distribuído todo ano) são proporcionais ao número de deputados federais eleitos. Ou seja, se o PSL não for capaz de eleger muitos parlamentares em 2022, seus recursos mirrarão. E as disputas nas cidades são cruciais para o futuro do partido, já que prefeitos e vereadores são importantes puxadores de votos para deputados. Em suma: o desempenho mostrará se a sigla soube investir direito ou se torrou o bilhete premiado em vão. Bolsonaro e o PSL fizeram um casamento que beneficiou os dois. Mas é inegável que, na separação, o PSL ficou com uma parte generosa da partilha. “O que vão fazer com esse espólio é que vai determinar o tamanho real da legenda”, afirma Cristiano Noronha, sócio da Arko Advice, consultoria de política.
A história recente do PSL mostra a barafunda que é o sistema partidário brasileiro. Essa sigla, agraciada com uma fortuna para seus planos futuros, já construiu um histórico considerável de mau uso do dinheiro público. Seu fundador, o deputado Luciano Bivar (PE), e o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antonio, que presidia o PSL em Minas Gerais em 2018, são acusados de utilizar candidaturas femininas de fachada para desviar dinheiro para candidaturas masculinas, no esquema conhecido como “laranjal do PSL”. No último dia 2, uma reportagem do jornal Folha de S.Paulo mostrou que parte do fundo partidário, já inflado em 2019, foi gasta com carros de luxo e restaurantes finos em Brasília. Transformada em carruagem milionária, a sigla tem agora muito mais dinheiro público para esbanjar. A aventura financiada pelos contribuintes brasileiros pode terminar com o PSL virando abóbora.
Publicado em VEJA de 12 de fevereiro de 2020, edição nº 2673