Em um passado não tão distante, Lula considerava uma “podridão” o uso de dinheiro público para bancar os pleitos de deputados e senadores aliados ao governo e uma “excrescência” a falta de transparência na distribuição dessas verbas. Para o petista, o caso que ficou conhecido como orçamento secreto — mecanismo que permitiu ao governo Bolsonaro repassar a parlamentares bilhões de reais em emendas sem que o nome dos verdadeiros beneficiados fosse divulgado — representava o “maior esquema de corrupção da história do país”. E o mandachuva de tudo isso, segundo ele, tinha nome, sobrenome e até apelido, o “imperador” Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados. As declarações, repetidas incansavelmente durante as eleições do ano passado, eram aplaudidas por apoiadores. Fim da campanha, o petista demorou menos de 100 dias para aderir a tudo aquilo que criticou.
Lula conhece como poucos os caminhos, as dificuldades e também as armadilhas da negociação política. Sabe que ter uma base de apoio sólida no Parlamento é essencial — e vital — para o bom funcionamento de qualquer governo. Em seu terceiro mandato, o presidente está diante de um Congresso mais conservador, teoricamente de maioria oposicionista. Pelas contas do governo, apenas 200 dos 513 deputados federais são efetivamente aliados do Planalto. No Senado, o desequilíbrio de forças é um pouco menor. Metade dos 81 senadores, em tese, marcharia hoje com o governo. São números frágeis demais para iniciar a discussão de projetos polêmicos como, por exemplo, o da reforma tributária, que precisaria dos votos de, no mínimo, 308 deputados e mais 49 senadores para ser aprovado. Em busca de uma solução rápida para inverter esse cenário adverso, o Planalto optou por usar o Diário Oficial. Em outras palavras, vai lançar mão das verbas e de cargos para tentar cabalar apoio.
O primeiro gesto mirou os deputados recém-chegados. Três bilhões de reais foram separados para os cerca de 200 congressistas que, por terem assumido os seus mandatos neste ano, não participaram da elaboração do Orçamento definido em 2022. Cada um deles terá direito a enviar 14 milhões de reais para a realização de obras em suas bases eleitorais. O governo também ampliou o valor das emendas individuais, recursos que os parlamentares destinam todos os anos aos seus estados e municípios. São 21 bilhões de reais (o dobro em relação ao ano passado). Antes, cada congressista recebia uma média de 18 milhões de reais. Agora, serão 32 milhões para cada deputado e 59 milhões para cada senador. Somadas a outras rubricas disponíveis, são quase 50 bilhões em verbas. Uma parte desses recursos, inclusive, vai seguir ritos de liberação muito similares ao criticado orçamento secreto, que foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal porque não observava critérios de política pública e de transparência.
A negociação com os parlamentares está centralizada na Secretaria de Relações Institucionais. Aliado de primeira hora de Lula, Alexandre Padilha se reúne todos os dias com o presidente, cuja sala fica a poucos metros da dele, no 4º andar do Palácio do Planalto. O ministro tem feito uma espécie de esforço concentrado. Dedica praticamente toda a sua agenda a audiências com deputados e senadores — de cafés no gabinete a visitas que varam a madrugada. Nesses encontros, ouve os pedidos, anota todos eles e se compromete a avaliar. Também tem escutado muitas reclamações. As principais recaem justamente sobre as emendas que, apesar de turbinadas, ainda não estão sendo liberadas, e sobre a demora na definição dos ocupantes dos mais de 3 000 prometidos no segundo e terceiro escalões do governo. Na última semana, por exemplo, Padilha prometeu a uma liderança insatisfeita do União Brasil que tudo vai melhorar. Garantiu que as verbas já prometidas começarão a ser empenhadas até o fim de abril. As indicações para os cargos também serão destravadas.
O governo acredita que essa estratégia será suficiente para conquistar o apoio que hoje lhe falta no Congresso. Um importante dirigente petista explica essa certeza com raciocínio aritmético. Segundo ele, tirando os aliados naturais, os parlamentares podem ser reunidos em três grupos: os radicais de oposição, os que constroem sua carreira política defendendo projetos e convicções e os que se comportam como vereadores. O primeiro grupo pode até votar algumas matérias alinhados com o governo, mas serão casos excepcionais. O segundo grupo, uma minoria, se dedica a fazer discursos e marcar posição sobre temas bem específicos. O alvo primordial do Planalto é exatamente esse terceiro grupo. “A carreira desses deputados e senadores depende da obra que eles levam para sua base. Ninguém lá quer saber se ele vota no PT ou no Bolsonaro. Sabemos que é essa liberação de emendas e cargos que garante a fidelidade do parlamentar ao governo”, afirma.
Em princípio, não há nada irregular nessa estratégia. Nos últimos trinta anos, todos os presidentes da República em algum momento compartilharam nacos de poder em troca de apoio político. Faz parte do jogo democrático. A princípio, é legítimo também que o Legislativo disponha de parte do Orçamento da União. É igualmente legítimo que o governo priorize a liberação de recursos que contemplem a execução de programas que os seus eleitores avalizaram nas urnas. Isso não significa que o Executivo está autorizado a usar os recursos públicos como bem entender, balizado apenas em conveniências. É preciso fiscalizar se o dinheiro que sairá dos cofres federais será aplicado de maneira correta e se os ocupantes dos cargos estarão realmente perseguindo o interesse público. “Mais uma vez o Executivo baseia sua relação com o Congresso na direção de favorecer os parlamentares que apoiam o governo”, adverte o economista Gil Castello Branco, da ONG Contas Abertas. “Isso costuma ser muito perigoso.”
Há alguns sinais de que os primeiros resultados já começam a surgir. O governo comemorou a bem-sucedida ofensiva que fez subir no telhado a proposta de criação da CPI sobre os atos de vandalismo do dia 8 de janeiro. Senadores de diversos partidos — como MDB, PSD, União Brasil e Podemos, que antes haviam apoiado a investigação — por algum motivo não confirmaram as assinaturas, o que fez naufragar a criação da comissão. Não se sabe ao certo se essa pequena vitória do Planalto já é fruto da estratégia de cooptação num território supostamente hostil. Depois da derrota, a oposição concentrou seus esforços na Câmara, onde deputados estão colhendo assinaturas para tentar instalar uma CPMI com o mesmo objetivo. Em outra frente, também na Câmara, os oposicionistas conseguiram reunir o número suficiente de assinaturas para instalar a CPI do MST, outra investigação que não interessa ao governo. Dependendo do que sair publicado nas próximas edições do Diário Oficial, há quem aposte que muitos deputados que assinaram o pedido acabem por mudar rapidamente de ideia.
Publicado em VEJA de 29 de março de 2023, edição nº 2834