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Polarização ideológica chega ao Oscar com ‘Democracia em Vertigem’

Indicação de Petra Costa e seu filme à estatueta de documentário leva o drama nacional aos holofotes em Hollywood — e pela óptica peculiar e irreal do PT

Por Marcelo Marthe e Eduardo Gonçalves
Atualizado em 4 jun 2024, 15h05 - Publicado em 17 jan 2020, 06h00
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  • Nos meses que antecederam o afastamento de Dilma Rousseff da Presidência da República, em abril de 2016, o Congresso Nacional viveu o tumulto natural de um impeachment. Em meio à algaravia, deputados e senadores tinham de lidar com uma tensão adicional: a presença de equipes de documentaristas. Vários produtores competiam por material para diferentes filmes sobre o processo que mudaria o rumo do país. Mas quem se destacava era uma moça inquieta — e obsessiva: a cineasta mineira Petra Costa. Ela enlouquecia os políticos e até sua equipe com determinações como gravar na íntegra as sessões do impeachment. Petra contava com a simpatia explícita dos petistas e montou seu QG nos gabinetes dos então senadores Lindbergh Farias (RJ) e Gleisi Hoffmann (PR). Mas, no outro lado da Praça dos Três Poderes, teve de suar para convencer Dilma, personagem principal da opereta, a abrir-lhe as portas do Palácio da Alvorada. É uma ironia que Dilma, ao menos de início, tenha sido refratária ao filme. Na segunda-feira 13, quando Democracia em Vertigem foi indicado ao Oscar de documentário, a polarização brasileira ganhou os holofotes mundiais — e é com sua narrativa favorável à ex-presidente que o país irá ao prêmio máximo do cinema, em 9 de fevereiro.

    Lançado em 190 países em junho passado, Democracia em Vertigem provocou de imediato reações extremadas por aqui. Os apoiadores de Lula e de Dilma sentiram-se de alma lavada: o filme é o lamento de uma mulher que viu os sonhos políticos de sua geração (ela hoje tem 36 anos) desabar com a derrocada do PT. O enredo corrobora a versão, tão alardeada pelo partido, de que o impeachment “foi golpe”. No lado oposto ficaram aqueles que enxergaram no impeachment a libertação do país da corrupção sistêmica dos doze anos do PT, exposta pela Operação Lava-Jato. Para essa massa de brasileiros, Democracia em Vertigem é um exercício vitimista apoiado numa visão convenientemente ilusória dos fatos.

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    A rinha manteve-se circunscrita às redes sociais até a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood dar a Democracia em Vertigem a chance de vender seu peixe em palco privilegiado. De O Quatrilho (1995) a Cidade de Deus (2002), o Brasil enfileirou indicações ao Oscar de filme estrangeiro e até das categorias principais. Na seara dos documentários, o país havia figurado como parceiro menor em coproduções transnacionais como Raoni (1978). Um documentário de produção genuinamente nacional no Oscar é a primeira vez — com o adendo de que Petra poderá ser a primeira mulher latino-americana a levar a estatueta.

    A simbologia política da indicação é óbvia. Para Hollywood, pouco importa o drama particular de Dilma. A chegada ao Oscar soa mais como recado ao governo de Jair Bolsonaro, que desagrada a celebridades do cinema com sua cruzada contra o ativismo ecológico na Amazônia e suas posições sobre a questão indígena. E Petra, cuja narrativa ignora verdades factuais, sabe se vestir de heroína. “A indicação vem da percepção de que o filme reflete a erosão da democracia e a escalada do autoritarismo. Ainda que tenha o Brasil como palco, a mensagem ecoa em todo o mundo”, disse ela a VEJA (leia a entrevista).

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    DERROTADA – Dilma discursa cercada de petistas após a queda: chá de cadeira na cineasta que defende sua versão (Evaristo Sá/AFP)

    Para chegar lá, a brasileira terá de desbancar outros quatro fortes competidores, que incluem dois filmes com visões devastadoras da vida em meio à guerra na Síria e outro com a grife do casal Michelle e Barack Obama. Mesmo que venha a triunfar, no entanto, Democracia em Vertigem continuará fadado a não agradar a gregos e troianos em seu país de origem. Para construir sua tese sobre o impeachment, Petra minimiza estrategicamente a dimensão dos escândalos de corrupção do partido de Lula e da participação fundamental do ex-presidente nesse esquema, fartamente documentada nas investigações, com suspeitas de envolvimento até de sua família na corrupção (a Polícia Federal apura no momento se empresas-fantasma pertencentes aos filhos de Lula da Silva foram usadas para lavar dinheiro de propina). A diretora também despreza a grana de corrupção canalizada para as eleições de Dilma, cifra que ultrapassou a casa do bilhão de reais, e o peso da devastação econômica promovida por ela.

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    Entre as inúmeras imprecisões, há ao menos um caso de adulteração deliberada da história. Quando Petra se refere à execução de dois militantes comunistas pela ditadura, em 1976, surge em cena a foto dos cadáveres no chão. Na imagem original, havia armas ao lado dos dois mortos — no filme, elas sumiram. Quando o detalhe veio à luz, a documentarista assumiu que apagou as armas, sob a justificativa de que a Comissão da Verdade mostrou que elas foram plantadas na cena pela polícia. É justo indignar-se com as artimanhas da repressão nos anos de chumbo, mas usar a manipulação como recurso contra a manipulação é um evidente despropósito. “Nesse episódio, e Petra é a primeira a reconhecer, ela cometeu um erro. Foi decisão que tomou precipitadamente, sem avaliar as consequências”, diz Eduardo Escorel, cineasta que prestou consultoria à produção.

    Os escorregões não eclipsam, contudo, alguns méritos de Democracia em Vertigem — muito menos sua eficácia como peça de culto para os convertidos, ou de convencimento dos votantes de Hollywood. Petra pode ser acusada de vários deslizes, mas não de esconder de que lado está e suas preferências. “Ela coloca a paixão que tem pelo Lula de maneira brutalmente honesta”, destaca o cineasta Fernando Grostein, colunista de VEJA. No documentário, há uma cena de Petra com 19 anos exultante ao votar em 2002 pela primeira vez para presidente (cravou Lula, claro). Numa sequência na qual o petista, recém-eleito, atravessa o Congresso recebendo tapinha nas costas, a diretora-narradora assim o define: “Um escultor, cujo material é a argila humana”. É duro ouvir uma comparação tão poética sobre um político condenado em duas instâncias da Justiça por corrupção. Por essas e outras, Democracia em Vertigem é um libelo assumidamente enviesado. Só que, nos documentários, o panfletarismo baseado em versões distorcidas da realidade não é considerado uma fraqueza. Mestres do ramo produziram obras-primas da propaganda política, para o bem e para o mal — a grande Leni Riefenstahl era a cineasta preferida de Adolf Hitler, e seu Triunfo da Vontade (1935) é não só uma peça de louvor ao nazismo, mas também uma aula de direção. No cinema contemporâneo, ninguém encarnou melhor a figura do pregador incendiário que o americano Michael Moore. Em produções como Tiros em Columbine (2002), Moore estica e puxa os fatos para construir uma narrativa demolidora contra o culto às armas pela direita americana e o governo de George W. Bush. Em certa medida, Petra é uma versão light, sensível e “lacradora” de Moore.

    Ela se vale de um artifício de valor comprovado nos documentários contemporâneos: narrando em primeira pessoa, não se furta a expor seus sentimentos e até os dramas de sua vida familiar. Petra testou essa marca confessional com sucesso em Elena, documentário de 2012 em que fala sobre o suicídio da irmã mais velha, aos 20 anos. E aprimora seu uso em Democracia em Vertigem, enfatizando sua ligação com a esquerda ao enaltecer a trajetória dos pais, Marília Andrade e Manoel Costa Júnior, que foram militantes do PCdoB durante a ditadura — ainda que a atuação deles não tenha sido tão dramática quanto ela pinta no filme. Humaniza a si própria e também a presidente Dilma ao promover um terno encontro entre sua mãe e a “presidenta” já destronada.

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    ANTES… – Foto original dos militantes mortos nos anos 70: as armas teriam sido plantadas pela repressão (//Reprodução)
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    …E DEPOIS – No documentário: para “corrigir” a história, a diretora apagou as armas, sem informar o espectador (//Reprodução)
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    Por fim, em uma cena no Palácio da Alvorada, revela que seu avô foi sócio-fundador de uma das maiores empreiteiras do país, a Andrade Gutierrez — o que faz de Petra herdeira de uma empresa envolvida até o pescoço nas falcatruas do petrolão. A Andrade Gutierrez perdeu seu status de grau de investimento da Fitch Ratings em meados de 2015, pouco antes de Petra começar a acompanhar Dilma. A decisão da Fitch foi logo após o então presidente da companhia, Otávio Marques de Azevedo, ser preso sob a acusação de pagar subornos à Petrobras em troca de contratos. A empresa aderiu de pronto ao mea-culpa. Além de ter de devolver, em parcelas, durante oito anos, 1 bilhão de reais aos cofres públicos, a empreiteira foi obrigada a publicar um comunicado em vários jornais com um “pedido de desculpas” à sociedade e uma lista de oito sugestões de medidas para reduzir o escopo para irregularidades em obras públicas.

    Petra nasceu em Belo Horizonte, em 1983. Quando tinha 1 ano, seus pais se separaram — o pai, Manoel Costa Júnior, foi o primeiro marido de Marília Andrade e também se envolveu com política. Foi deputado pelo então PMDB nos anos 80 e, mais recentemente, como secretário nos governos dos tucanos Aécio Neves (com quem, aliás, Petra tem uma ligação familiar distante, mencionada no documentário) e Antonio Anastasia, viu-se envolvido em uma investigação que apontava fraudes na legalização de terras no norte de Minas Gerais (isso, é claro, também não aparece no documentário).

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    INCENDIÁRIO – Michael Moore em Tiros em Columbine: panfletarismo eficaz (//Reprodução)

    Da família que é dona de uma das maiores empreiteiras nacionais, Marília sempre foi conhecida pela generosidade com a causa. Ela doou cerca de 400 000 reais nas últimas cinco eleições. Diversos candidatos foram agraciados, de aspirantes a vereador a presidente da República — a grande maioria era do PT, sigla à qual ela é filiada desde 1997. Após a exploração sórdida do nome de Lurian, filha do então candidato Lula, pela campanha vitoriosa de Fernando Collor na disputa presidencial de 1989, Marília levou a moça para viver com ela e Petra em Paris, no começo dos anos 90. A cineasta tinha só 8 anos. Na temporada parisiense, Marília estava casada com o argentino Luis Favre, conhecido namorador de musas da esquerda — a mais famosa delas foi a ex-senadora Marta Suplicy, com quem foi casado até 2009, anos depois da relação com a mãe de Petra.

    Com essas credenciais, a moça teve condições privilegiadas para montar seu circo no Congresso. As filmagens ocorreram entre março de 2016 e meados de 2018, totalizando 6 000 horas de gravações. Graças ao lobby dos petistas, o presidente do Senado, Renan Calheiros, deu acesso livre aos documentaristas a locais restritos do Senado. A proximidade e a liberdade de gravar garantiram a Petra a coleta de material precioso. Com imagens próprias ou cedidas por gente ligada ao PT, ela obteve registros impressionantes no olho do furacão — veem-se a cara de Dilma na hora do voto que definiu sua queda ou Lula ao telefone comemorando sua frustrada indicação a ministro da Casa Civil. Mas seu acesso irrestrito ao coração do poder irritava políticos e assessores. “A gente não podia ir ao banheiro que eles vinham atrás”, brinca o auxiliar de um deputado da oposição ao PT. Petra incomodou até parlamentares petistas, ao adentrar reuniões estratégicas na sala da liderança do partido. Retribuindo a acolhida generosa, ela doou 9 000 reais à campanha fracassada para a reeleição de Lindbergh Farias, em 2018. Uma das principais conclusões de seu filme é que a elite política, empresarial e financeira do país, da qual ela assume fazer parte, arquitetou o “golpe” contra Dilma e tirou Lula e o PT de cena, pondo a democracia brasileira em risco. Nas gigantescas manifestações pró-impeachment que levaram milhões de pessoas às ruas, os depoimentos e imagens escolhidos são caricatos para se contraporem aos testemunhos de pessoas humildes beneficiadas pelas políticas sociais de Lula e Dilma. Se a vontade popular é a maior expressão da democracia, como sustentar a tese de que as oligarquias armaram para derrubar o PT, tendo em conta a surra que o partido tomou nas urnas em 2018, quando recebeu a menor quantidade porcentual de votos na eleição presidencial nas últimas duas décadas e Dilma, candidata ao Senado em Minas, ficou em quarto lugar na disputa no estado? Para Petra, aparentemente, a democracia fica em risco quando o seu lado político perde o poder.

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    REAÇÕES – Os tuítes do PSDB e de Dilma após a indicação: troca de farpas que ajuda a inflar o filme (Reprodução/Twitter)

    Meses depois do barulho em torno do lançamento, a diretora devotou-se ao marketing de seu filme no Oscar. Com o apoio da Netflix, conhecida pela agressividade na promoção de seus candidatos, fez exibições em várias cidades americanas, conquistando garotos­-propaganda como os atores Tim Robbins e Jane Fonda. Democracia em Vertigem tirou proveito, ainda, do fato de o processo de seleção favorecer a presença de títulos politizados nessa categoria do Oscar. “Os documentários com causa são reflexo do mundo em que vivemos. Não dá mais para tapar o sol com a peneira”, diz o produtor brasileiro Daniel Dreifuss. O filme também foi bem recebido em festivais como Sundance, celeiro do cinema engajado.

    No Brasil, as reações à indicação foram previsíveis. Dilma não parece mais a mesma que deu chá de cadeira na cineasta: apressou-se em afirmar que o filme representava a denúncia do “golpe” no Oscar. O PSDB fez uma crítica bem-humorada à hipótese de levar a sério o documentário que consagra a versão petista: seria melhor concorrer como ficção ou fantasia, diz um tuíte do partido. Se nas gravações o então deputado Jair Bolsonaro não se furtou em falar com Petra, o agora presidente atacou, como de praxe, abaixo da cintura. Declarou que o filme era “bom” para “quem gosta do que o urubu come”. As farpas podem animar a torcida adversária. Mas, na prática, só ajudam a polir a imagem da cineasta como paladina da democracia aos olhos da Academia de Hollywood. Quando a vertigem é muito forte, a emoção nubla a razão.


    Rivais respeitáveis

    Dos quatro documentários que concorrem com Democracia em Vertigem, três são codirigidos por mulheres. Confira cada um deles

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    INDÚSTRIA AMERICANA
    Produzido pelo casal Michelle e Barack Obama, narra o choque social causado pela chegada de novos donos chineses para gerir uma fábrica que foi fechada pela GM em Ohio em 2008

    INDUSTRIA AMERICANA
    (Aubrey Keith/Netflix)

    HONEYLAND
    A contemplativa produção faz um alerta sobre a extinção das abelhas ao explorar a vida da última representante de uma antiga linhagem de criadores desses insetos na Macedônia

    HONEYLAND
    (//Divulgação)

    FOR SAMA
    A diretora Waad Al-Kateab expõe sua dura vida de mãe de um bebê nascido e criado em meio aos ferozes bombardeios em Aleppo, cidade devastada pela guerra civil na Síria

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    FOR SAMA
    (//Divulgação)

    THE CAVE
    Outra vez, a conflagrada Síria: o filme — o único com direção 100% masculina — acompanha a rotina de médicas num hospital subterrâneo que atende vítimas da guerra entre 2016 e 2018

    THE CAVE
    (//Divulgação)

    Colaborou Ana Pessoa

    Publicado em VEJA de 22 de janeiro de 2020, edição nº 2670

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