Quando Ana Flávia Rigamonti viu Fabrício Queiroz pela primeira vez, em junho do ano passado, não tinha a menor ideia de quem ele era nem desconfiou que estava diante de um dos personagens mais intrigantes da República. Um mês antes, ela havia recebido uma proposta de trabalho de Frederick Wassef, advogado do presidente Jair Bolsonaro. Os dois se conheceram nos tribunais, atuaram juntos em algumas causas e estudavam estender a parceria. Wassef propôs que ela trocasse Ipiguá, cidade no interior de São Paulo com 5 000 habitantes, pela capital. Sugeriu também que, enquanto ela procurasse um imóvel para alugar, poderia morar no próprio escritório dele, em Atibaia, que funcionava numa casa confortável, localizada num lugar afastado e tranquilo, que nem parecia escritório. Pouco tempo depois de se instalar, Rigamonti foi informada que teria companhia. Dividiria o espaço com uma pessoa que estava doente e precisava de um lugar para ficar. A advogada só soube mais tarde que o homem que falava pouco, quase não saía de casa e se apresentava como “Felipe” era o famoso Fabrício Queiroz. Escondido desde que explodiu o escândalo da rachadinha, o policial aposentado estava sendo investigado pelo Ministério Público do Rio de Janeiro como suspeito de ter comandado um esquema de arrecadação de parte dos salários dos funcionários do gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, filho do presidente. Ao descobrir a verdadeira identidade do vizinho de quarto, a advogada, de início, ficou preocupada. Mas ela logo se aproximou de Márcia de Aguiar, esposa de Queiroz, que a tranquilizou, explicando que o marido não oferecia qualquer risco e que não era foragido da Justiça. Rigamonti acabou se transformando na única companhia de Queiroz. Os dois iam ao mercado juntos, cozinhavam juntos e gastavam o tempo de confinamento conversando. Ela chegou a acompanhar o ex-policial a um tratamento médico num hospital e até emprestou o próprio carro para que ele viajasse ao Rio de Janeiro para visitar a família. As regras da casa eram rígidas.
Queiroz foi orientado a não utilizar o telefone celular nem qualquer cartão de crédito. As compras deveriam ser feitas apenas em dinheiro. Ao sair na rua, era obrigatório usar óculos e boné. Certa vez, ele esqueceu o disfarce e foi reconhecido dentro de um supermercado. Ficou assustado quando alguém sussurrou seu nome, mas serviu de lição. Para não ser seguido, costumava se deslocar de uma cidade para outra durante a madrugada. Sempre discreto, o ex-policial não comentava praticamente nada da vida pessoal, especialmente sobre sua relação com a família Bolsonaro. Dizia apenas que era muito amigo do presidente, por quem tinha um sentimento de gratidão, e que o senador Flávio Bolsonaro, seu ex-chefe, era “muito gente boa”. Todos os dias acompanhava o noticiário e gostava de falar de política.
O confinamento e as rígidas regras de segurança aos poucos foram se transformando em problema. A defesa de Queiroz apostava que conseguiria anular a investigação do caso da rachadinha. A ideia era manter o ex-policial escondido até que isso acontecesse. Em novembro, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou uma ação que poderia resultar no arquivamento do inquérito. Nesse período, Rigamonti e Márcia trocaram uma série de mensagens por telefone. “A gente não é foragido. Ah, que saco. Eu já não estou aguentando mais essa situação, amiga. Não estou. Ganhando ou não ganhando, o nosso nome vai ficar na mídia, o nome do Queiroz vai ficar na mídia por muito tempo”, desabafou a mulher do policial aposentado.
Essa troca de mensagens cita que um tal “Anjo” havia traçado um plano para que Queiroz sumisse dali em caso de derrota no STF. A ideia era que o ex-assessor de Flávio Bolsonaro se mudasse com a família para uma casa alugada em Atibaia. Rigamonti chegou a procurar algumas opções de imóveis, em endereços mais discretos. Mas a mulher de Queiroz resistia à proposta. Conforme VEJA revelou em agosto, Rigamonti disse para Márcia: “Ele (Queiroz) falou para o ‘Anjo’ que não aguenta mais isso, que está cansado e que ele quer ir embora”. O ex-policial acabou sofrendo uma derrota no Supremo. O clima ficou muito tenso. No mesmo mês, o Ministério Público fez uma busca na casa de Márcia e apreendeu o celular dela, onde foram encontradas as mensagens citadas nesta reportagem. Em junho deste ano, Queiroz foi preso sozinho dentro do escritório de Wassef na Operação Anjo.
Pelo contexto das mensagens, promotores desconfiam que o tal “Anjo” seja Frederick Wassef. Em entrevista a VEJA, o advogado negou. “Nunca alguém me chamou de Anjo. Nunca o presidente Bolsonaro me chamou de Anjo e duvido que ele chamou alguém de Anjo na vida. Ninguém na família Bolsonaro me chamou de Anjo e eu nunca tive apelido de Anjo. Agora, se alguém inventou isso, eu não sei”, afirmou, ressaltando ter dado abrigo a Queiroz por razões humanitárias. Na época, o ex-policial fazia tratamento contra um câncer. Logo depois da prisão de Queiroz, VEJA também questionou Ana Rigamonti sobre a identidade do “Anjo”:
A senhora é o “Anjo”? Isso não faz nenhum sentido.
Quem criou esse apelido? Não fui eu que criei esse apelido. Não sei o que significa esse apelido e quem inventou esse apelido. Quando conheci o Queiroz e a Márcia, esse apelido já existia. Não fui eu que inventei. Eram eles que usavam esse apelido.
Eles usavam esse apelido para se referir a Frederick Wassef? Sim.
A senhora sabe por que eles se referiam a Wassef como “Anjo”? Como eu te falei, desde quando eu os conheci, já era chamado assim.
Entre eles? Wassef, Márcia e Queiroz? Isso.
Procurada novamente por VEJA, a advogada disse que não queria mais falar sobre o assunto. “As pessoas me vincularam ao caso simplesmente porque eu estava ali no local e conheci as pessoas. Caí de paraquedas nessa história. Foi uma situação muito difícil para mim e para minha família”, desabafou. Após a prisão de Fabrício Queiroz, Rigamonti recebeu ameaças e foi aconselhada a esquecer o que viu e ouviu no escritório de Atibaia. Ela voltou a morar em Ipiguá e, no momento, ganha a vida vendendo lingerie.
Publicado em VEJA de 9 de setembro de 2020, edição nº 2703