As eleições municipais de novembro serão diferentes das anteriores em mais de um aspecto. Primeiro pelo impacto da pandemia, que forçou o adiamento da votação antes prevista para outubro e vai mudar a forma de fazer campanha. A disputa também será marcada por uma fragmentação inédita — nas treze capitais com mais de 1 milhão de habitantes haverá 163 candidatos a prefeito, 40% mais do que em 2016. É recorde desde a redemocratização. As duas maiores metrópoles, São Paulo e Rio de Janeiro, terão catorze candidatos cada uma. Em outras cidades, a multiplicação é ainda mais expressiva: Curitiba, que teve nove concorrentes há quatro anos, registra dezessete; em Goiânia, o número saltou de sete para quinze.
Um dos principais motivos para o fenômeno é a proibição, a partir deste ano, de coligações para eleições proporcionais. Como cada partido só pode contar com os votos da própria chapa de vereadores, prevaleceu a tese de que é melhor ter um candidato a prefeito para ajudar a puxar votos para a Câmara. Outra razão é a cláusula de barreira progressiva imposta pela reforma de 2017. Ela faz com que as legendas só tenham acesso ao fundo partidário e à propaganda no rádio e na TV se alcançarem um desempenho mínimo nas eleições de 2022: ao menos 2% dos votos válidos para a Câmara em nove estados ou eleger onze deputados em nove unidades da federação. Os partidos se movem com a crença de que mais vereadores elevam as chances de emplacar deputados daqui a dois anos.
A fragmentação foi acelerada ainda pelo faro eleitoral de legendas menores, que viram espaço para crescer diante da derrocada de siglas tradicionais alvejadas por denúncias de corrupção e pela falta de renovação de seus quadros. “Continua em curso a crise de partidos e lideranças, a mesma que já ajudou Bolsonaro em 2018”, avalia José Álvaro Moisés, cientista político da USP. Mas mesmo os vencedores de 2018 não ficaram livres da divisão de forças. São Paulo é um bom exemplo disso. Joice Hasselmann (PSL) e Levy Fidelix (PRTB) estavam no trator bolsonarista que surpreendeu o país. Agora, vão se enfrentar nas urnas e terão de disputar o voto conservador e de direita com outros candidatos que estão na mesma trilha, como Celso Russomanno (Republicanos), Arthur “Mamãe Falei” do Val (Patriota) e Filipe Sabará (Novo). Em meio às tratativas que podem levar o presidente de volta ao PSL — de onde saiu brigado em 2019 —, a ala bolsonarista tentou rifar a candidatura da ex-aliada Joice para apoiar Russomanno. “Duvido que o presidente queira ter a estrela do Centrão tatuada na testa”, diz Joice, em referência a Russomanno. No Rio, os conservadores terão quatro candidaturas, incluindo a do prefeito Marcelo Crivella. Assim como o escolhido de Bolsonaro na capital paulista, Crivella é filiado ao Republicanos, ligado à Igreja Universal. A briga pelo voto bolsonarista é ainda mais acirrada em outros locais, como Belém, onde concorrerão à prefeitura dois pastores evangélicos, um ex-delegado e um candidato do PRTB, partido que aposta todas as suas fichas no vice-presidente, Hamilton Mourão, que prometeu se envolver nas quinze capitais onde a sigla disputará prefeituras.
No outro extremo ideológico, há uma guerra de foice na esquerda pelo espólio eleitoral do PT, que sofreu uma derrota acachapante nas eleições municipais de 2016 e, ao que tudo indica, caminha para outro fiasco. O ex-ministro Tarso Genro, o senador Humberto Costa e outros petistas mais propensos ao diálogo tentaram convencer as alas majoritárias a apoiar candidaturas mais competitivas. A iniciativa fez água, com exceção de Florianópolis, onde PSOL, PT, PDT, PSB, PCdoB e Rede se uniram em torno de Elson Pereira (PSOL). No Rio naufragou a tentativa do deputado Marcelo Freixo (PSOL) de formar uma frente em torno de seu nome, com a promessa de armar um palanque contra Bolsonaro em 2022. “A esquerda não está analisando corretamente os seus interesses estratégicos. Está contemplando exclusivamente a disputa por municípios, quando, na verdade, a disputa é pelo futuro do país”, critica Genro. No Recife, o PT forçou a divisão na esquerda que governava unida o estado, desde a eleição de Eduardo Campos em 2006, e a prefeitura, a partir da vitória de João Paulo (PT) em 2000. O racha é inclusive familiar: os deputados João Campos e Marília Arraes, bisneto e neta do patriarca da família, Miguel Arraes, vão se enfrentar. O PSOL ficou com Marília, enquanto PDT, PCdoB e Rede fecharam com Campos. “Agora, que temos um período de ameaça à democracia e deveríamos estar todos juntos nas principais cidades do país, o PT vem com seu exclusivismo de novo”, critica o presidente do PSB, Carlos Siqueira.
Se a esquerda e a direita terão disputas fratricidas, com o centro o ambiente também não é de tranquilidade. No Rio, onde três candidaturas dividiram o eleitorado moderado em 2016 e não chegaram a lugar algum, o cenário não será muito diferente em 2020, com cinco postulantes. Na capital paulista, o prefeito Bruno Covas, do PSDB, terá como um dos concorrentes o ex-tucano Andrea Matarazzo, atualmente no PSD. O ex-governador Márcio França também transita nessa faixa, embora esteja filiado ao PSB. Em Porto Alegre, PTB, PP, PSD, Republicanos e PROS, todos do Centrão, terão candidatos, além do MDB e do PSDB, do prefeito Nelson Marchezan Jr. — este, inclusive, vai enfrentar o vice, Gustavo Paim (PP).
O racha entre os moderados deu origem a um fenômeno curioso: o surgimento de centristas-bolsonaristas. “É a turma que radicaliza tentando pegar o eleitorado do presidente”, diz Marchezan Jr., que lidera as pesquisas na capital gaúcha. Em São Paulo, Márcio França, que já foi até apelidado de “Márcio Cuba” por seus adversários na campanha para o governo do estado em 2018 em referência ao seu partido socialista (perdeu para João Doria, mas bateu o tucano na votação da capital), apareceu recentemente todo sorrisos em um evento ao lado de Bolsonaro. Caso França consiga passar para o segundo turno, seus aliados acreditam que o presidente oferecerá apoio a ele para tentar cravar nas costas de Doria uma derrota em seu próprio território e, com isso, enfraquecer o rival, que almeja medir forças com Bolsonaro em 2022.
O possível plebiscito paulistano entre o eleitorado de Doria e Bolsonaro não é o único movimento que antecipa lances do pleito presidencial. Nesta semana, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com prestígio cada vez menor, saudou a desistência de Rejane de Almeida, do PCdoB, que saiu do páreo para apoiar Benedita da Silva no Rio. Em troca, o PT no Maranhão vai se engajar na campanha de Rubens Pereira Júnior, o candidato do governador Flávio Dino (PCdoB). Preocupado com o tamanho do palanque para 2022, Lula tenta manter ao seu lado algumas siglas que já apoiaram Fernando Haddad em 2018. Enquanto isso, o ex-governador Ciro Gomes vem consolidando uma grande aliança nacional entre PDT e PSB, que estarão juntos em oito capitais, como Rio (Martha Rocha), São Paulo (Márcio França), Rio Grande do Sul (Juliana Brizola) e Fortaleza (José Sarto). Em São Paulo, João Doria deu um passo estratégico importante ao fechar em torno da candidatura de Bruno Covas um acordo com o DEM e o MDB, aliança que pode se manter até a disputa pelo Palácio do Planalto.
Em meio a toda essa movimentação, a tática de Bolsonaro é jogar parado. A intenção do presidente será entrar para valer apenas no segundo turno para não se desgastar antes da hora e evitar melindres com os aliados do Centrão, que têm candidaturas espalhadas pelas capitais. Sua influência no pleito não pode ser desprezada. O capitão surfa ainda na onda que impulsionou a vitória em 2018 e tentará tirar proveito da popularidade em alta. “O ciclo político-eleitoral da direita continua e o conservadorismo é o principal combustível dessa expansão”, avalia o cientista político Antonio Lavareda. Para fazer frente a essa força, partidos de esquerda procuram compor chapas com nomes ligados à área de segurança, uma das bandeiras bolsonaristas. Os petistas lançaram a major Denice Santiago, da Polícia Militar, para a disputa em Salvador. No Rio, o vice do PSOL será Íbis Silva Pereira, coronel da reserva da PM. Desde a quarta-feira 16, quando terminou o prazo para as convenções dos partidos, os exércitos estão definidos para a guerra. Mas a batalha será na base do todos contra todos.
Publicado em VEJA de 23 de setembro de 2020, edição nº 2705