Em 1562, um grupo de vereadores da Bahia enviou uma carta a Sebastião I, rei de Portugal, relatando um fato grave que estaria se passando na capitania. Segundo a denúncia, Mem de Sá usou do cargo para se apropriar da escravização de indígenas e do comércio de âmbar. Preocupados, eles pediram ao monarca que nomeasse um novo governador, de preferência um homem “fidalgo”, “virtuoso” e que não fosse “cobiçoso”. O documento é considerado um dos primeiros registros oficiais de desvios de conduta e enriquecimento ilícito na história do Brasil. Naquela época, a colônia tinha 15 000 habitantes, entre eles os privilegiados servos da Coroa, que já acumulavam verdadeiras fortunas, enquanto índios, escravos e imigrantes — a grande maioria da população — viviam em situação de miséria. Quatrocentos e sessenta anos depois, fome e corrupção, duas tragédias nacionais, continuam no centro do debate político e, mais uma vez, servirão de arma retórica no embate eleitoral entre os dois principais candidatos a presidente da República.
Lula (PT) e Jair Bolsonaro (PL) sabem que o desempenho da economia será decisivo para o resultado da eleição e que o tema da corrupção voltará a ser amplamente explorado durante a campanha. O ex-presidente costuma lembrar que o PIB cresceu 7,5% em seu último ano de mandato, em 2010, mas omite que Dilma Rousseff, escolhida por ele como sucessora, jogou o país na pior recessão de sua história recente. Já o atual presidente prefere criar problemas quase toda semana em vez de governar o Brasil. No ano passado, a inflação superou a casa dos 10%, e a miséria voltou a ser um assunto nacional. Os dois adversários também não conseguiram virar a página dos escândalos nos quais estão implicados. Lula teve condenações anuladas por questões processuais, e não a inocência reconhecida pela Justiça. Já Bolsonaro vive às voltas com denúncias de rachadinha na família e de aparelhamento de órgãos de fiscalização com o objetivo de manietá-los. Ou seja: ambos compartilham de fragilidades nas áreas que escolheram para atingir o oponente. Será, portanto, um duelo de narrativas. O petista pretende apontar o atual presidente como responsável pela maior onda de pobreza que o país já viveu. Bolsonaro, por sua vez, pretende pintar o ex-presidente como o político mais corrupto da história.
Preparando-se para o confronto, o PT encomendou à Fundação Perseu Abramo, ligada ao partido, uma pesquisa qualitativa sobre os humores da parcela da população “não polarizada” — eleitores que não gostam nem desgostam da sigla e frequentemente são identificados como indecisos. Foram ouvidas pessoas com renda de até cinco salários mínimos, perfil de mais da metade do eleitorado brasileiro. Os entrevistados disseram que a corrupção é o principal problema da política nacional, mas responsabilizaram o sistema como um todo, e não um ou outro partido especificamente, nem ninguém em particular. Não deixa de ser uma boa notícia para o PT, que protagonizou os dois maiores escândalos de corrupção da história recente, o mensalão e o petrolão, e viu seu líder máximo, Lula, e outros companheiros estrelados ser presos pela Operação Lava-Jato. “A criminalização do PT perdeu força”, concluíram os pesquisadores da Fundação Perseu Abramo.
Libertado da prisão e com condenações anuladas por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), Lula vai tratar o petrolão como uma conspiração destinada a tirar o PT do poder e entregar a Petrobras aos interesses estrangeiros. O petista vai insistir que o STF reconheceu a sua inocência, o que não é verdade. “A vantagem da narrativa bolsonarista é que há muitos elementos para pintar o PT como um dos partidos políticos mais corruptos da história do Brasil”, declara o cientista político Sérgio Praça, da FGV. Uma pesquisa qualitativa que chegou ao Planalto no fim do ano passado testou um grupo de eleitores no Nordeste, região onde o ex-presidente lidera com folga. Perguntados acerca de quem votariam em 2022, 70% responderam que Lula era o candidato preferido. A imagem do ex-presidente foi então associada ao PT, aos principais escândalos e a figuras notórias de esquemas de corrupção como o ex-ministro José Dirceu. Resultado: metade dos entrevistados mudou imediatamente de ideia, admitindo a possibilidade de escolher outro candidato. “A corrupção é do DNA da nossa cultura política: sempre foi um problema da nossa história e esteve disseminada em toda a sociedade. Ela provoca miséria e desigualdade social, uma questão fundamental que impede o Brasil de ser uma nação de primeiro mundo”, diz a historiadora Adriana Romeiro, autora do livro Corrupção e Poder no Brasil: uma História, Séculos XVI a XVIII.
De acordo com a Transparência Internacional, o Brasil ocupa a 96ª colocação no Índice de Percepção da Corrupção em 2021 — a terceira pior nota da série histórica. Quanto melhor a posição no ranking, menos o país é considerado corrupto. É fato que o governo Bolsonaro, até o momento, não registrou nenhum grande escândalo de corrupção, mas isso não isenta o presidente de responsabilidade por um dos pilares de sustentação da maioria dos esquemas de roubalheira: a impunidade. O Brasil, segundo a Transparência, está “estagnado em um patamar muito ruim em relação à percepção da corrupção no setor público” — e o motivo disso são ações do Executivo, do Congresso e do Judiciário que “levaram ao retrocesso no arcabouço legal e institucional anticorrupção do país”. Nos últimos anos, com o apoio ou o aval de muitos aliados do governo, a Operação Lava-Jato foi implodida, os investigadores, transformados em investigados e os condenados, soltos. Isso, evidentemente, influiu na percepção geral de que a corrupção aumentou. Mas é Lula, segundo Bolsonaro, a face mais visível desse problema.
O contra-ataque do PT também está devidamente ensaiado. “A grande dificuldade do Bolsonaro é que esse discurso (sobre corrupção) não enche a barriga de ninguém, não bota o prato de comida na mesa de nenhuma família, não gera emprego, não reposiciona o Brasil no mundo”, ressalta o deputado Alexandre Padilha (PT-SP), levando a discussão para o outro terreno. Para o PT, claro, fugir desse tema é mais que uma questão de estratégia, mas, principalmente, de sobrevivência. Diz o cientista político Márcio Coimbra: “Nem Lula nem Bolsonaro possuem autoridade moral para falar de combate à corrupção. O Lula não foi inocentado, ele viu os casos da Lava-Jato ser arquivados por questões processuais. E Bolsonaro convive com o fantasma de explicar as rachadinhas dos filhos, além de ter se associado ao Centrão, o mesmo grupo que saqueou o Brasil durante o governo Lula. Resumindo, é o sujo falando do mal lavado.”
Embora as questões morais tenham suprema importância, as pesquisas mostram que a economia hoje é a principal preocupação dos brasileiros, seguida da saúde e das questões sociais, como a fome. A corrupção está em quarto lugar. Isso, evidentemente, pode beneficiar o desafiante. “Todas as outras pautas são secundárias. A prioridade do Lula primeiro é enfrentar a fome e dar comida ao povo”, diz o deputado José Guimarães (PT-CE). Em 2003, no primeiro ano de governo petista, 28% da população brasileira (50,8 milhões de pessoas) viviam abaixo da linha da pobreza, ou seja, tinham uma renda mensal inferior a 261 reais em valores atualizados, segundo dados da Fundação Getulio Vargas (FGV). Treze anos depois, quando o PT deixou o governo, esse índice havia caído para 10,8% (22,2 milhões de brasileiros). Em 2019, quando Bolsonaro subiu a rampa do Palácio do Planalto, havia 23 milhões de pessoas vivendo nessa condição (11% da população). De acordo com o último levantamento feito pela FGV, em outubro do ano passado, no ápice da pandemia do coronavírus, o número de pobres chegou a mais 27 milhões (13% da população). “As pessoas não se importam se o presidente é responsável por tudo na economia. Mas elas votam como se ele fosse”, frisa o cientista político Sérgio Praça. É diante dessa perspectiva que os candidatos vão apostar suas fichas.
Durante a campanha, Lula vai dizer que seu governo criou o maior programa social do mundo, o Bolsa Família. Bolsonaro pretende rebater dizendo que foi ele quem majorou o valor do auxílio. Detalhe: antes de chegar ao poder, Lula foi um crítico feroz de programas assistenciais e “eleitoreiros” como o Bolsa Escola, o embrião do Bolsa Família criado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Bolsonaro, também antes de chegar ao poder, classificava o Bolsa Família do governo petista como “esmola”. O fato é que nenhum dos dois candidatos enfrentou de verdade o problema da miséria, optando pelo caminho mais fácil de cuidar dos sintomas em vez de tentar curar a doença.
Por enquanto, petistas e bolsonaristas polarizam esse debate, que não deve ficar restrito apenas a eles. O ex-juiz Sergio Moro (Podemos), por exemplo, ficou conhecido por sua atuação na Lava-Jato, a maior e igualmente polêmica operação anticorrupção da história. Pelas redes sociais, ele já chamou Lula de “criminoso” e Bolsonaro de “enganador”. “Sou o único pré-candidato à Presidência com credibilidade para combater implacavelmente a corrupção”, disse a VEJA. Na outra ponta, o tucano João Doria já elegeu “emprego e renda” como o tema principal de sua campanha. São Paulo, como se sabe, tem no quesito economia números melhores do que o Brasil nos últimos três anos. “Não será com populismo de esquerda nem de extrema direita que vamos superar a situação em que se encontra o Brasil”, ressalta o governador de São Paulo, que deixará o cargo no fim do mês para se dedicar integralmente à corrida presidencial.
Políticos e analistas acham que a inflação cairá neste ano, mas há dúvida sobre se a queda será suficiente para mudar o humor do eleitor, que, em sua maioria, reprova o governo Bolsonaro. Por outro lado, o presidente começa a apresentar sinais de recuperação nas pesquisas, o que, segundo seus aliados, é reflexo do pagamento do Auxílio Brasil. O programa, que substituiu o Bolsa Família e paga o dobro do valor médio de seu antecessor, é uma das principais apostas do presidente para recuperar popularidade e votos entre quem ganha até dois salários mínimos, a base da pirâmide social. Diante da dúvida sobre o desempenho da economia, ainda mais agora com a instabilidade provocada pela guerra da Ucrânia, Bolsonaro manterá a pregação contra a corrupção. Como ocorre na maioria das eleições, os favoritos até aqui estão mais preocupados em construir discursos redentores ou benevolentes do que apresentar soluções. Eles podem até se beneficiar eleitoralmente, mas, sem propostas ou ações concretas, continuarão condenando o país a conviver com as mesmas pragas de quatro séculos atrás.
Publicado em VEJA de 16 de março de 2022, edição nº 2780