Ninguém sabe ao certo quão sincera e duradoura é a conversão de Jair Bolsonaro à moderação, mas é inegável que a mudança de postura do presidente da República provocou efeitos positivos. Um deles ocorreu na relação do Palácio do Planalto com o Congresso. Ao deixar de lado ataques e tentativas de intimidação contra parlamentares, o governo facilitou a tramitação de projetos como a nova lei do saneamento e a renovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Em ambos os casos, as divergências de mérito das propostas foram resolvidas no voto, como reza a cartilha democrática, sem que ministros e parlamentares bolsonaristas acusassem os congressistas de achaque, como aconteceu em ocasiões anteriores. A tendência é de que esse debate republicano se repita em outra iniciativa fundamental para o país, a reforma tributária, que voltou à pauta legislativa depois de meses em banho-maria.
Tentada em governos anteriores, a aprovação da reforma tributária não será fácil. Todos concordam que a iniciativa é vital para simplificar a vida do contribuinte e reduzir o chamado custo-Brasil. O problema é que esse consenso no diagnóstico é acompanhado de divergências profundas sobre o remédio a ser prescrito. O ministro da Economia, Paulo Guedes, por exemplo, defende a criação de um imposto sobre transações digitais para custear a desoneração de outros tributos. Nos tempos de radicalização, a simples sugestão de criar um modelo de tributo similar à CPMF interditou o debate. Agora, no entanto, há deputados dispostos a discutir a ideia, o que já é um avanço. Com Bolsonaro e seus ministros sentados à mesa de negociação, a disputa se dará no voto. “Com a diminuição da temperatura política, os assuntos mais complicados passaram a ser analisados com mais tranquilidade”, diz o líder do governo no Congresso, senador Eduardo Gomes (MDB-TO). “Isso é fruto do amadurecimento e de uma relação que aos poucos se distancia do clima de pós-campanha eleitoral”, acrescenta.
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Clique e AssineOs reflexos dessa acomodação já foram percebidos em outras searas. Em sua primeira viagem depois que se curou do coronavírus, o presidente foi ao Nordeste acompanhado de um grupo de parlamentares da região, fez questão de anunciar o nome de cada um no microfone e acenou para a importância de governar ao lado do Congresso. A prática, segundo ele, deve se tornar rotina. “O presidente mudou. Nos últimos dois meses, ele está muito mais tranquilo e o crescimento dele em popularidade é impressionante”, afirma o senador Ciro Nogueira (PP-PI), um dos líderes do bloco parlamentar conhecido como Centrão. Expert em farejar oportunidades políticas, o congressista se mostra entusiasmado com a parceria: “No meu estado, tem cidades em que o presidente tinha 70% de não aprovação e 20% de aprovação. Hoje isso está meio a meio. Pode anotar: o Bolsonaro vai chegar às eleições de 2022 com percentuais muito próximos aos que Lula já teve no Nordeste”, afirma (veja reportagem na pág. 40).
O cientista político Leonardo Barreto ressalta que, como a relação pacificada entre o governo e o Congresso é recente, ainda não houve tempo para a criação de uma agenda conjunta. Mas os ganhos, segundo o diretor da Vector Análise, são notáveis em várias direções: “O Executivo, por exemplo, passa a ter condições de bloquear as chamadas pautas-bomba, que em outras situações poderiam ser aprovadas, gerando um clima de instabilidade”, diz. É fato que a reaproximação foi um movimento pautado mais pela necessidade do que pela sensatez. O acirramento da crise entre os poderes criou tensão institucional e imensos desgastes ao governo, potencializados pela pandemia do coronavírus e suas consequências. “O resultado é que as movimentações para a cassação do mandato de Bolsonaro foram reduzidas, o governo conseguiu de alguma maneira retomar a interlocução para fazer reformas e assim preservou o capital político do presidente em meio à crise econômica e de saúde pública”, diz o cientista político Rafael Cortez, da consultoria Tendências.
Na maior parte de seu mandato até aqui, Bolsonaro enfrentou dificuldades com o Congresso. Mesmo líderes governistas admitem que a ameaça de impeachment e a prisão de Fabrício Queiroz, faz-tudo da família presidencial, foram decisivas para a mudança de postura do presidente. Quando Bolsonaro apostava na radicalização, o debate sobre seu afastamento acontecia nas rodas de conversa em Brasília. Agora, em meio à pacificação, o assunto, ao que parece, foi definitivamente enterrado. Na semana passada, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, rechaçou a abertura de um processo de impeachment. Segundo ele, não há nada que justifique a medida. Davi Alcolumbre, o presidente do Senado, jamais aventou essa possibilidade. Com os ânimos serenados na Praça dos Três Poderes, tanto Maia quanto Alcolumbre já pensam na possibilidade de pegar carona na acomodação em curso. Os dois não admitem publicamente, mas desejam ser reconduzidos a seus respectivos cargos. A Constituição proíbe a reeleição, mas a dupla não descarta que um arranjo político de última hora possa superar essa barreira. Pode ser. Os novos ventos em Brasília parecem favorecer a estabilidade.
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699