O chefe da Casa Civil da Presidência da República é, em regra, o ministro mais poderoso de qualquer governo. Cabe a ele, entre outras coisas, definir planos de investimento, firmar parcerias com estados e municípios, coordenar ações com outras pastas. O ex-governador da Bahia Rui Costa, escolhido para ocupar o cargo, também é o primeiro auxiliar a despachar com Lula nas primeiras horas da manhã. Na terça-feira 14, o presidente ressaltou ainda mais essa supremacia ao determinar que qualquer política pública só poderá ser anunciada depois de receber o sinal verde da Casa Civil. Ou seja, nada — absolutamente nada — avança sem antes passar pelo gabinete do superministro. Antes disso, Lula já havia transferido para a pasta o comando da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), ampliando ainda mais o raio de ação do ministério. A medida é controversa e serve para alimentar as teses de utilização do serviço secreto para fins políticos, uma prática que já produziu de casos pitorescos a escândalos monumentais nas últimas décadas.
No governo de Fernando Collor de Mello, um cidadão usando uma credencial de imprensa do Palácio do Planalto foi flagrado vigiando o trabalho dos jornalistas. O presidente Itamar Franco teve conversas íntimas interceptadas e divulgadas de maneira ilegal. Durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, auxiliares que conduziam o processo de privatização das empresas de telefonia foram monitorados, um procurador da República que fustigava o Planalto foi envolvido numa emboscada amorosa com o objetivo de desacreditá-lo e movimentos sociais estiveram sob vigilância. No primeiro mandato de Lula, descobriu-se a existência de uma investigação que tinha como alvos um banqueiro e um ministro do Supremo Tribunal Federal considerados adversários do PT. E assim foi em todos os governos até aqui (veja o quadro).
Além de se converterem em escândalos, uns de maior e outros de menor magnitude, todos esses casos se conectam com interesses políticos de turno e tiveram como epicentro a Abin. A espionagem de adversários, ilegal e criminosa, é uma prática herdada da ditadura que sobreviveu à democracia. O governo Lula justificou a transferência da agência para a Casa Civil como uma forma de diminuir a influência militar e evitar o seu uso ilícito. Tomara. Até agora, no entanto, a medida surtiu um efeito contrário no cenário brasiliense. “Essa mudança é perigosa e muito preocupante. A Casa Civil é um ministério político e pode usar informações para constranger de alguma forma os adversários”, diz o senador Esperidião Amin (PP-SC), ex-presidente da Comissão de Controle das Atividades de Inteligência do Congresso. “O PT sempre foi craque em lançar mão desses métodos”, adverte. A oposição já anunciou que pretende barrar a medida no Congresso e usará como munição uma acusação de espionagem que envolve o ministro Rui Costa, a quem a Abin agora está subordinada.
O caso, sob investigação do Ministério Público da Bahia, apura as circunstâncias da morte de um policial militar, executado em meio a uma operação de sua própria corporação. A história tem como pano de fundo a suspeita do uso do aparelho de Estado em uma ação política clandestina. Em setembro do ano passado, durante a campanha eleitoral, a disputa pelo governo baiano afunilava entre os dois favoritos: ACM Neto, do União Brasil, e Jerônimo Rodrigues, do PT, apoiado pelo então governador Rui Costa. A vítima era segurança de ACM Neto e acompanhava o candidato num comício que seria realizado num município próximo a Itajuípe. Na véspera do evento, à noite, o policial descansava numa pousada da região, quando um destacamento da PM invadiu o quarto. Ele foi executado com seis tiros. Um colega dele, também policial e da equipe de segurança do candidato, foi atingido por outros cinco disparos, mas sobreviveu. Os dois teriam sido confundidos com traficantes. Essa é a versão oficial.
Mensagens trocadas entre os policiais no dia do crime e anexadas ao pedido de investigação indicam que a Secretaria de Segurança da Bahia estaria monitorando clandestinamente o deslocamento dos carros usados pela campanha de ACM Neto. Para justificar a vigilância e permitir o acompanhamento do candidato do União, foram incluídas no sistema de busca da polícia placas de veículos que supostamente estariam sendo usados por traficantes procurados foragidos. A situação saiu do controle quando os seguranças foram vistos entrando armados na pousada. O gerente do hotel alertou uma ala da PM que não sabia da manobra. Eles consultaram as placas dos carros no sistema e viram que pertenciam a criminosos em fuga. Resultado: troca de tiros e uma morte. ACM Neto, que perdeu a eleição para o candidato do PT, não tem dúvidas de que foi alvo de operação de inteligência organizada com o aval de Rui Costa (embora não exista nenhuma comprovação disso). O objetivo, segundo ele, seria captar alguma atividade ilegal que pudesse ser usada contra ele na campanha eleitoral.
Em defesa dessa tese, aliados de Neto relatam abordagens estranhas que sofreram ao longo da campanha. Um deles, o ex-deputado Cacá Leão (PP), que disputava uma vaga para o Senado, conta que estava saindo do aeroporto de uma cidade no extremo oeste da Bahia quando o carro que usava foi subitamente fechado por duas viaturas da polícia — não havia, no local, nenhuma blitz ou barreira, nem qualquer outro evento que justificasse a abordagem da forma como aconteceu. “Foi tudo muito estranho, rude. Quando me viram, ficaram olhando, observaram o que tinha dentro do carro e, depois, mandaram seguir sem dizer nada”, lembra. O episódio aconteceu dois dias antes do assassinato do segurança. “Soubemos que a orientação era monitorar os deslocamentos dos carros da nossa equipe em busca de dinheiro ou algo que nos comprometesse”, diz ACM Neto.
Na época, a campanha pediu ao Ministério da Justiça que apurasse o caso. Questionado na última terça-feira sobre o andamento da investigação, o ministério recomendou que a reportagem procurasse a Polícia Federal. A PF, por sua vez, disse que a resposta caberia ao Ministério da Justiça. Rui Costa também não quis se manifestar sobre o episódio. Na terça-feira, o jornal O Globo publicou uma reportagem mostrando que a Abin possui e usou um equipamento capaz de monitorar simultaneamente o deslocamento de milhares de pessoas através do sinal do aparelho celular. A ferramenta foi adquirida no fim do governo Michel Temer e, de acordo com a agência, foi usada durante os anos Bolsonaro para rastrear a movimentação de agentes estrangeiros que atuam ilegalmente no país. A princípio, portanto, nada de ilegal. O problema é acreditar nessa versão, já que o histórico e as missões do passado — atendendo ou não às ordens do mandatário de plantão — apontam sempre na direção contrária.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2023, edição nº 2833