O presidente Jair Bolsonaro encontra-se em estado de beligerância com Rodrigo Maia (DEM-RJ) desde que o comandante da Câmara dos Deputados criou um calendário independente da agenda do governo para aprovar reformas e medidas econômicas importantes. Uma nova frente de batalha entre Executivo e Legislativo começou a se armar há três semanas, quando Bolsonaro procurou Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente do Senado, a pretexto de discutir a relação com os políticos. “Davi, sempre que precisar de alguma coisa, manda para cá que nós fazemos por decreto”, teria ouvido dele o parlamentar, segundo o próprio contou a um colega de Senado. Ainda de acordo com o mesmo relato, a conversa ficou tensa a partir desse momento. Alcolumbre retrucou dizendo que não era possível governar sem respeitar o Congresso e criticou as medidas do Executivo, em sua opinião, muito distantes das prioridades nacionais. O que era seria um encontro informal e amigável terminou em clima de conflito iminente.
Os primeiros tiros acabaram sendo disparados no último dia 26. Bolsonaro vetou cinco trechos de um projeto de lei considerado o novo marco legal das agências reguladoras. A medida era debatida no Congresso desde 2013 e foi aprovada no Senado em 29 de maio — sob a relatoria de um parlamentar bolsonarista, a anuência da base governista e o aplauso da maioria dos especialistas da área. Quatro dias antes da decisão, Bolsonaro já havia sinalizado claramente que iria abrir fogo. Em uma entrevista coletiva improvisada na saída do centro médico do Palácio do Planalto, ele reclamou dos “superpoderes do Legislativo” e disse que o Congresso queria transformá-lo em rainha da Inglaterra — aquela que reina mas não governa.
No caso da nova lei das agências, o presidente vetou a quarentena de um ano para quem trabalha em setores regulados e a formação de uma comissão para sugerir uma lista tríplice de candidatos a diretor e conselheiro. O chefe do Executivo indicaria os membros da comissão e teria a palavra final na escolha de seus preferidos com base na lista tríplice. Mesmo assim, Bolsonaro vetou o trecho, alegando que perderia autonomia para fazer nomeações. “Não tem nada de rainha da Inglaterra, e não foi dado nenhum poder a mais ao Congresso”, critica o senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator do projeto e vice-líder do governo na Casa. “A lista tríplice funcionaria como um apoio e um filtro para o presidente.”
Outros dois pontos importantes eliminados estipulavam a proibição à recondução de dirigentes e o comparecimento deles ao Senado para prestação de contas. “Os vetos vão contra a lógica do governo de ter uma composição técnica, sem toma lá dá cá, sem precisar fazer algo para se manter no cargo”, afirma o economista Gesner Oliveira, autor do livro Agências Reguladoras: a Experiência Internacional e a Avaliação da Proposta de Lei Geral Brasileira. “A prestação de contas, por exemplo, é feita recorrentemente nos Estados Unidos.”
Um dos membros mais influentes da tropa de Bolsonaro na batalha contra o Legislativo é o assessor internacional Filipe Martins. Em uma postagem realizada no dia 24 no Twitter, ou seja, 48 horas antes da decisão do presidente sobre as agências reguladoras, disse que era necessário “restringir o escopo da atuação dessas agências, que distorcem a livre concorrência e afetam cada vez mais aspectos privados de nossas vidas”. Houve quem o chamasse nos bastidores de “Dirceuzinho”, em alusão a José Dirceu, ex-chefe da Casa Civil de Lula. Em 2003, o governo petista tentou alterar o funcionamento das agências por considerar que elas eram independentes demais. Não conseguiu. Eleito para ser a antítese do PT, Bolsonaro não parece confortável em deixar esses órgãos longe de suas rédeas. “É um paradoxo brutal o governo ter uma agenda correta de concessões e, ao mesmo tempo, não dar o devido valor à independência das agências”, diz Bruno Dantas, ministro do Tribunal de Contas da União, que fiscaliza os órgãos governamentais.
As agências foram criadas na gestão Fernando Henrique Cardoso, na década de 90, com o objetivo de fiscalizar a iniciativa privada quando ela assume funções prestadas anteriormente pelo Estado. Na prática, o negócio nunca funcionou como se imaginava. Agências importantes ficaram à mercê do lobby empresarial e das barganhas políticas. Um estudo da FGV realizado em 2016 mostrou que a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) ficou 27% de sua existência sem um presidente empossado. O órgão é um reduto histórico de influência do PL (antigo PR), comandado por Valdemar Costa Neto, condenado no mensalão.
Em dezembro de 2018, no apagar das luzes, Michel Temer indicou para a direção da Anvisa o seu ex-líder de governo André Moura (PSC-SE), dono de longa ficha criminal e sem experiência na área da saúde. Pressionado, Temer acabou recuando. Na época, Bolsonaro foi às redes sociais dizer que, quando tomasse posse, os indicados teriam perfil técnico. Nesse caso, cumpriu a promessa. Escaparam dos vetos avanços para coibir essas práticas. Está proibida a indicação para as diretorias de parentes de políticos ou pessoas que exerçam funções político-partidárias. Os postulantes também terão de comprovar experiência de ao menos dez anos no setor. Outro ponto positivo é a possibilidade de os órgãos discutirem questões orçamentárias diretamente com o Ministério da Economia, e não mais com as pastas às quais estão subordinados, o que reforça sua independência.
Dias antes da discussão sobre as agências, o Senado havia derrubado o decreto de armas de Bolsonaro. Alcolumbre também devolveu o trecho de uma MP que transferia a demarcação de terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura. A medida já tinha sido recusada pelo Congresso, mas Bolsonaro insistiu em enviá-la novamente. Na justificativa, o senador afirmou que o presidente cometeu “grave ofensa ao texto constitucional”.
A consequência do choque entre poderes é a paralisia do governo. “O Executivo não consegue trabalhar”, afirma Malco Camargos, professor de política brasileira da PUC-MG. No calor da batalha, ressurgiu até discussão sobre a conveniência de abandonar o regime presidencialista. A única experiência parlamentarista no país durou dezesseis meses e, como se sabe, foi improvisada para garantir a posse de João Goulart, tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro. Há dois projetos no Congresso que propõem um regime de “semiparlamentarismo”, no qual o presidente divide as atribuições com o primeiro-ministro. Mas são ideias que têm tanta chance de sair do papel quanto o eterno projeto de renda mínima de Eduardo Suplicy. O mais certo para o futuro próximo é o acirramento da batalha, pois nenhum dos lados parece disposto a ceder um milímetro de terreno. Quem perde com esse choque é o Brasil.
Publicado em VEJA de 3 de julho de 2019, edição nº 2641
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