As perspectivas de que a curva de transmissão do coronavírus só começará a apresentar tendência de queda entre agosto e setembro ressuscitaram no Congresso Nacional uma antiga discussão sobre o calendário eleitoral. Em uma conferência com prefeitos, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, ao falar das preocupações de que questões políticas pudessem influenciar no combate à doença, sugeriu que se avaliasse a possibilidade de adiar as eleições municipais, marcadas para outubro. Como técnico, o ministro não pode desconsiderar a hipótese de que a pandemia atinja proporções de tragédia como acontece em países como a Itália. Se algo parecido ocorrer no Brasil, é claro, não haverá nenhuma condição de o pleito ser realizado. Mesmo se a Covid-19 for controlada dentro de alguns meses, como esperam as autoridades, ainda assim é razoável supor que faltaria tempo para que os partidos fizessem suas convenções e preparassem suas campanhas. Muito provavelmente, o tempo também seria escasso para que a Justiça Eleitoral organizasse a logística necessária para a coleta dos votos em mais de 5 000 municípios. Portanto, segundo o ministro, é recomendável que se elabore um plano de contingência.
Mudar a data das eleições, porém, é uma tarefa de difícil execução. É necessário reunir, de imediato, o apoio de um terço de deputados ou de senadores para que o tema comece a tramitar no Congresso, e depois submeter a proposta a duas votações tanto na Câmara quanto no Senado. Além disso, seria preciso conseguir o aval do Supremo Tribunal Federal (STF) para flexibilizar uma trava na Constituição, conhecida como princípio da anualidade, que não permite que se troquem regras eleitorais a menos de um ano do pleito de outubro. Futuro presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o ministro Luis Roberto Barroso, que assumirá o posto em maio, no auge da crise do coronavírus no país, trabalha com o mês de junho como data-limite para que se avalie se o cenário exige ou não o adiamento da disputa eleitoral. A VEJA, ele defendeu a tese de que as eleições sejam realizadas neste ano, ainda que nos últimos dias de dezembro. “Se não for seguro o comparecimento às seções de votação, será o caso de adiar as eleições, mas tenho confiança em que a situação estará controlada até então”, afirmou o ministro.
Na Justiça Eleitoral, ministros do TSE relataram a VEJA que técnicos do tribunal já reportaram por diversas vezes o temor de que não seja possível as eleições ocorrerem em outubro — os receios vão desde os testes ainda não concluídos em urnas eletrônicas até o risco de não haver condições sanitárias mínimas para garantir as disputas municipais. Barroso afirma ser precipitado traçar agora um plano de contingência para as eleições e refuta a ideia de o Judiciário dar guarida a iniciativas oportunistas, que já começaram a aparecer. De fato, há gente no Congresso farejando a brecha. Após a sinalização de Mandetta, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) saiu a campo em busca de apoio para alterar a Constituição, prorrogar o mandato atual de prefeitos e vereadores por mais dois anos e unificar as eleições a partir de 2022. Denunciado na Lava-Jato, o parlamentar tem influência sobre um séquito de cerca de 200 prefeitos. Mais do que uma questão de saúde pública, para o senador piauiense adiar as eleições de outubro é também uma estratégia de autofortalecimento político. “Acredito que até o fim de abril saberemos se haverá ou não condições de realizar as eleições em outubro, e a unificação do pleito é uma demanda antiga”, diz Ciro Nogueira.
Oportunismos e malandragens à parte, a discussão sobre a unificação das eleições brasileiras numa mesma data é válida. Do jeito que está hoje, a cada dois anos a classe política interrompe as suas funções para garantir a eleição de aliados ou tentar um novo posto. Em geral, cerca de 16% dos deputados se aventuram em eleições municipais, fenômeno que deve se repetir neste ano. Daí o calendário apertado para a aprovação de reformas e uma dinâmica do Executivo e principalmente do Legislativo sempre voltada para as campanhas (e não para os mandatos). Um dos subprodutos desse calendário contínuo de eleições foi justamente a promiscuidade que se estabeleceu no Brasil entre o poder público e entes privados na questão dos financiamentos eleitorais.
Em Brasília, porém, o que conta é o imediatismo e as conveniências eleitorais. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que apoia Eduardo Paes, também do DEM, para a prefeitura do Rio, é contra adiar as eleições e decidiu estancar a manobra na origem. A interlocutores ele disse que não colocará em votação nenhuma proposta de empurrar o pleito municipal para daqui a dois anos. O recado foi repassado a ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral. Em uma reunião a portas fechadas na segunda-feira 23, o deputado anunciou a aliados como pretende desarmar qualquer articulação nessa direção. Maia encomendou um parecer jurídico à consultoria da Câmara, que, além de classificar como inconstitucional a prorrogação do mandato de prefeitos e vereadores, diz que os municípios brasileiros podem ser administrados provisoriamente por juízes a partir de janeiro, caso não haja eleições até o fim do ano. “Adiar as eleições é hoje um movimento de minoria, mas que pode ganhar corpo”, afirma o deputado Marcos Pereira (Republicanos-SP), que também é contra discutir a medida no momento.
Até aqui já surgiram três PECs que pedem não só o adiamento da eleição mas também a unificação com o pleito nacional de 2022 — uma demanda antiga de alguns grupos políticos em Brasília. Os autores das propostas foram os senadores Major Olimpio (PSL-SP) e Elmano Férrer (Podemos-PI) e o deputado Aécio Neves (PSDB-MG), que mesmo pilhado pela Lava-Jato ainda mantém proximidade com muitos prefeitos, principalmente em Minas. Entre os partidos, só o Podemos, que sonha em ter o ministro Sergio Moro como candidato a presidente em 2022, demonstrou interesse em defender a medida. “Minha intenção não é só prolongar o mandato de prefeitos e vereadores por dois anos, mas reunir 2 bilhões de reais do fundo dos partidos e mais 1 bilhão, que seria o custo da Justiça Eleitoral para organizar as eleições, e destinar tudo para a saúde pública, que está nessa situação de calamidade”, diz Olimpio.
A pandemia de coronavírus já provocou mudanças no sistema eleitoral de diversos países. Um dos últimos a ser afetado foi a Bolívia, que declarou quarentena no sábado 21 e suspendeu a eleição presidencial, que estava marcada para o início de maio. A Rússia também pôs em suspenso o referendo que decidiria se o presidente Vladimir Putin poderia permanecer à frente do país até 2036. A França, que hoje contabiliza mais de 1 300 mortes, manteve o cronograma estipulado para o primeiro turno do pleito municipal no último dia 12, mas amargou a maior abstenção em sessenta anos — somente 45% dos eleitores compareceram. Já os Estados Unidos enfrentam um cenário de instabilidade, e uma série de estados suspendeu as primárias democratas que definirão o adversário de Donald Trump na eleição de novembro. Com ou sem adiamento no Brasil, o processo eleitoral em meio ao coronavírus provavelmente terá desfechos imprevisíveis. Para o cientista político Carlos Melo, do Insper, temas municipais como a saúde pública e a situação de moradores de rua ganharão força nos debates, embora o estado da economia também deverá nortear os rumos das candidaturas. “Uma das consequências terríveis desse processo será o desemprego”, diz. Com o adiamento das eleições ou não, o fato é que o coronavírus vai deixar profundas marcas na política brasileira.
Publicado em VEJA de 1 de abril de 2020, edição nº 2680