A primeira visita de um presidente estrangeiro ao Brasil foi a do argentino Julio Roca, em 1899. E a primeira visita de um presidente brasileiro ao exterior foi a de Campos Salles à Argentina, em 1900. A troca de visitas e outras gentilezas entre os chefes de Estado dos dois países não é uma escolha. Obedece a um determinismo geográfico e a um imperativo geopolítico. A posse do novo presidente da Argentina, Alberto Fernández, não teve, pela primeira vez desde a redemocratização nos dois países, a presença do presidente brasileiro (excetuada a improvisada posse do presidente-tampão Eduardo Duhalde, no vácuo de poder do início dos anos 2000). Jair Bolsonaro embirrou e não foi. E, não fosse a decisão de última hora de enviar o vice-presidente Hamilton Mourão, ninguém viria de Brasília; a representação do governo brasileiro ficaria a cargo do embaixador em Buenos Aires, Sérgio Danese.
Sob a égide de seu desgosto com a eleição de um peronista, amigo de Lula e Dilma, e ainda por cima com Cristina Kirchner como vice, mais amiga ainda de Lula e Dilma, Bolsonaro viveu os dias anteriores à posse numa indecisão tão excruciante quanto a de qual seria a melhor resposta a uma ofensa pessoal. Primeiro decidiu que em seu lugar iria o ministro da Cidadania, Osmar Terra. Depois, aparentemente enciumado com a missão de boa vontade realizada em Buenos Aires pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, decidiu que não queria mais brincar — não enviaria ninguém. Enfim, na véspera da posse, em mais uma reviravolta, tirou o general Mourão do congelador onde o guardara desde que o vice lhe soara tagarela demais, saidinho demais, e encarregou-o da missão. Foi bom que tivesse voltado atrás. Antes com o vice do que sem enviado de Brasília. O problema é que as idas e vindas desvelam um processo mental movido pela irracionalidade e pela impulsividade. Ainda bem que, ao contrário do presidente dos Estados Unidos, Bolsonaro não carrega ao alcance do dedo o botão do ataque nuclear.
Os mesmos rompantes da política interna, levados à política externa, ameaçam pilares de nossa diplomacia como a relação com a Argentina. Tudo começou quando, durante a campanha eleitoral no país vizinho, a língua solta do presidente brasileiro foi se meter onde não era chamada, ao dizer que, ganhando o peronismo, a Argentina viraria uma Venezuela e o Rio Grande do Sul, um canteiro de refugiados igual a Roraima. Para piorar, Bolsonaro tem um chanceler que, ao contrário do que é a essência da profissão de diplomata, ajuda a atiçar o fogo. Ernesto Araújo disse que Alberto Fernández é uma matriosca com Lula e Chávez dentro, e assim inviabilizou-se como interlocutor com a nova situação na Argentina — logo a Argentina. Não à toa, quando pensou em mandar um ministro, Bolsonaro fixou-se em Osmar Terra, que não tem nada a ver com o peixe, e não em Araújo, que em tese teria tudo a ver.
“As relações com a Argentina exigem dos presidentes um cuidado permanente”
As relações com a Argentina, sendo o que são, exigem dos presidentes de um e outro lado um cuidado permanente. No livro Diplomacia Presidencial, publicado em 1999, o diplomata Sérgio Danese — o mesmo que é hoje embaixador em Buenos Aires — escreve: “Não foi certamente por coincidência que a primeira visita oficial de um chefe de Estado estrangeiro ao Brasil haja sido a do argentino, e que a primeira visita de um chefe de Estado brasileiro ao exterior se tenha feito à Argentina, cuja importância para o Brasil como parceiro e contraponto político-diplomático já era evidente na virada do século passado”. Danese acrescenta que o presidente Hermes da Fonseca, em 1912, ao enviar o ex-presidente Campos Salles para missão oficial na Argentina, instruiu-o a “deixar-se ver todas as tardes passeando na Calle Florida”. A visibilidade do ilustre agente brasileiro ajudaria a aparar suscetibilidades ainda vivas com a vitória do barão do Rio Branco na disputa de fronteiras na região das Missões.
Em seus arroubos no campo da política externa, Bolsonaro tem sofrido repetidas trombadas com a teimosa senhora chamada realidade. Foi assim na relação com a China, foi assim na questão da mudança da embaixada para Jerusalém, e tomara que, na relação com os EUA, já esteja processando o aviso disparado por Donald Trump ao anunciar a taxação do aço brasileiro. No caso da Argentina, Fernández já estendeu a mão ao pregar, no discurso de posse, uma agenda com o Brasil “respaldada pela nossa relação histórica e que vá além de qualquer diferença pessoal ou ideológica”. Se, para Bolsonaro, ajustar o Brasil de acordo com os seus desejos já é difícil, que dizer ajustar o mundo?
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Publicado em VEJA de 18 de dezembro de 2019, edição nº 2665