Na divisão de tarefas entre as esferas de poder, zelar pela segurança da população cabe sobretudo aos governadores. São os estados que estão à frente das Polícias Civil e Militar, responsáveis pelo enfrentamento da bandidagem. Aos municípios, restam tarefas que, embora mais indiretas, têm seu potencial de colaborar no combate à criminalidade, seja preservando o mais básico, como a iluminação pública em dia, seja tomando medidas para garantir a obediência à lei fundiária, tão castigada pela invasão de marginais que desdenham da lei. Mesmo com essas fronteiras bem definidas, a violência, elencada como preocupação número 1 dos brasileiros, fenômeno registrado pesquisa após pesquisa, migrou com tudo para os palanques dos ainda pré-candidatos a prefeito. E o que se vê são políticos de todos os matizes, muitos concentrados em grandes cidades, debruçados sobre seus programas para trazer a segurança ao centro das eleições de outubro.
Um levantamento feito por VEJA mostra que dezessete aspirantes à cadeira de alcaide nas 26 capitais são egressos das forças de segurança e já declararam que irão se apresentar na cédula como delegados, capitães ou sargentos. Em São Paulo, onde o prefeito Ricardo Nunes (MDB) briga pela reeleição em uma costura com o PL de Jair Bolsonaro, foi escalado para vice Ricardo de Mello Araújo (PL), um ex-coronel da Polícia Militar que integrou a Rota, braço de elite da corporação conhecido por sua elevada letalidade. O nome atende aos anseios dos eleitores ouvidos em pesquisas internas dos marqueteiros de Nunes — pela primeira vez, o controle da violência desponta no topo das expectativas sobre a gestão municipal. Não à toa, Nunes vem posando ao lado do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), bem avaliado na área. Nesse duelo, Guilherme Boulos (PSOL) acaba de se comprometer com a contratação de 5 000 agentes para a Guarda Civil e com a implantação de um programa para recuperar celulares furtados, com base em uma boa experiência do Piauí.
Ciente de estar caminhando sobre um terreno mais movediço para o espectro da esquerda, dado que a direita se apropriou de um discurso linha-dura insuflado pelo bolsonarismo, o PT lançou uma cartilha com propostas para a segurança, para dar um norte a seus candidatos. O panfleto defende o reforço do policiamento ao redor de escolas e o apoio ao combate a maus-tratos contra as mulheres, mas a principal recomendação mesmo é a velha ideia (muito martelada pela oposição, aliás) de armar a Guarda Civil, a princípio encarregada de vigiar os prédios municipais. Os especialistas são unânimes em afirmar que agentes munidos apenas de cassetetes são inócuos contra o crime, mas ponderam que é preciso cautela na adoção da medida. “Não faz sentido transformar as guardas municipais em mini-PMs, sua função é a segurança comunitária”, diz Guaracy Mingardi, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A iniciativa do Planalto é uma tentativa de dar respostas especialmente no Nordeste, onde o crime organizado avança e os homicídios crescem, atingindo as gestões estaduais do PT na região — o que, sabidamente, pode reverberar no pleito deste ano. Na Bahia, governada pelo petista Jerônimo Rodrigues, ficam sete das dez cidades mais violentas do país, fruto do sangrento confronto entre forças policiais e quadrilhas. O partido, nesse contexto, fez um movimento ao centro e saiu em apoio do vice-governador, Geraldo Júnior (MDB), na corrida pela prefeitura de Salvador. Contrariou assim a ala mais à esquerda, que se vê representada na figura de Kleber Rosa (PSOL), não por acaso um investigador da Polícia Civil. “O governo do estado será cobrado agora pela incapacidade de dar à sociedade o que ela espera”, aposta Bruno Reis (União Brasil), atual prefeito da capital baiana. Também do PT, o governo de Elmano de Freitas, do Ceará, vive tormento semelhante. Os homicídios ali subiram 20%, o que passou a dominar a disputa em Fortaleza, dando fôlego ao bolsonarista Capitão Wagner (União Brasil), que vem atropelando os postulantes do PT e do PDT de Ciro Gomes. “Não há mais lugar seguro no Ceará”, brada o capitão.
Um dos picadeiros mais efervescentes para o debate da segurança é, certamente, o Rio de Janeiro, onde a milícia e o tráfico dominam imensos nacos do território. Na disputa pela prefeitura carioca, o deputado federal Alexandre Ramagem (PL) aposta suas fichas na condição de candidato do ex-presidente Bolsonaro, lembrando pertencer aos quadros da Polícia Federal. “Chama o delegado”, diz o jingle de um vídeo que circula entre seus apoiadores (que não menciona, por óbvio, ser ele investigado por um sistema paralelo de arapongagem enquanto esteve à frente da Agência Brasileira de Inteligência, a Abin). O atual prefeito, Eduardo Paes (PSD), que disputa a reeleição, também adentrou esse terreno — endureceu seus pronunciamentos contra a milícia e instalou na Secretaria de Ordem Pública um delegado da Polícia Civil, Brenno Carnevale. Até o deputado federal Tarcísio Motta (PSOL) planeja agitar com vigor a bandeira da segurança, disparando contra “a inação” frente ao crime organizado.
Outro que está focado na reeleição, o prefeito de Manaus, David Almeida (Avante), inventou uma tal Romu, sigla para Ronda Ostensiva Municipal, para atuar nos terminais de ônibus. Almeida sustenta que a medida colheu bons resultados, mas ela não impediu a ofensiva de seu rival, o deputado federal Amom Mandel (Cidadania), um novato de 23 anos que ganhou projeção ao denunciar o suposto envolvimento da cúpula da segurança do estado com células criminosas. “A toda hora vemos aqui policiais e guardas municipais presos por corrupção”, ataca Mandel, que sofreu uma batida policial a qual jura ter sido arquitetada por adversários na arena política. Enquanto o Amazonas se afoga em números desfavoráveis, o atual alcaide se mexe para não perder terreno. “Quando as coisas vão mal, você vai jogar pedra na casa da autoridade mais próxima, que é o prefeito”, lembra Guaracy Mingardi, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Com a taxa de homicídios praticamente inalterada há quatro anos e os roubos e furtos de celulares cravando 120 por hora por todo o país, os brasileiros se veem enredados na insegurança, um cenário ao qual o governo Lula está bem atento — e tem razões para tal. “A direita vem tomando a dianteira no tema e tem oferecido opções vistas como mais práticas que as da esquerda, voltada para avanços sociais, estratégia tida como de mais longo prazo”, avalia José Vicente da Silva Filho, ex-secretário nacional de Segurança Pública. Na quarta-feira 26, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, municiou o presidente com a proposta de uma PEC que amplia as atribuições da Polícia Federal para atuar na investigação de crimes cometidos por facções e milícias, texto a ser apreciado ainda pelo Congresso. A ver se a iniciativa vai mesmo atacar o problema, que certamente extrapola, e muito, o pleito de outubro.
Publicado em VEJA de 28 de junho de 2024, edição nº 2899